Jornal de Angola

Huambo minha terra pela quarta vez

- Manuel Rui

A guerra parou. Fomos ao Huambo cantar os meninos do Huambo em umbundu por Raúl David e em português por Paulo de Carvalho. Visitámos vários municípios onde reinava a fome visível no edema das crianças de barriga inchada e sem cabelo. Eu ia a chorar emocionado

Pela primeira vez é numa vénia ao nosso rei Wambo Kalunga que fundou o reino do Wambo. Oiço a sua voz, os gritos dos guerreiros de zagaia e flechas, porrinhos e javites contra os invasores com armas de pederneira e fundanga.Os invasores perderam. A palavra do nosso rei escutei-a na pedra que faz umponto mais alto, o Morro do Moco, de onde se pode ouvir todo o silêncio. A pedra está lá em abóboda para som de capela. É depois da Caála. Os invasores começaram a disparar para o alto da pedra onde o nosso rei juntara os seus guerreiros. Veio uma chuva com trovão, faíscas e granizo. O invasor não podia acender fogo para aparelhar as escupetas e a sua tropa foi quase dizimada. Na fuga, o comandante perguntou ao prisioneir­o, que fazia de guia como era regra,a razão de como acontecera aquela desgraça. Poderia ter sido um feitiço? Perguntava o comandante invasor pois falava muito nisso e que a sua tropa havia sido abençoada e sacramenta­da por sua missão civilizado­ra contra tudo e todos. O guia coçou a cabeça e respondeu cabisbaixo: só se foi um feiticeiro da chuva. O quê? Há feiticeiro­s que chamam a chuva? Matem esse gajo. Não. Primeiro temos de agarrar outro. E a chuva retomou com mais força. Passou muito tempo. Em 1928, Norton de Matos resolveu inventar a cidade de Nova Lisboa antes de ela existir. Escolheu o local. Mandou desenhar um plano diretor. A região era rica em água, boa terra para arar e minerais.Depois o comboio que havia de ser o Caminho de Ferro de Benguela para transporta­r o cobre do Katanga. Saia do Lobito até ao Congo e previa-se uma ligação até Moçambique. Quem mandava em Norton de Matos era o inglês Robert Williams. Ele ordenou que a tropa portuguesa matasse todos os reis da região para que as populações, sem lideranças, se entregasse­m aos duros trabalhos da construção da linha férrea. E o povo deslocou-se para a beira da linha onde nasceram povoados. E foi assim que se construíra­m no Huambo as maiores oficinas de África lá para depois do bairro S. João era tudo do CFB (caminhos de ferro de Benguela), casas de madeira à inglesa para os funcionári­os do invasor,chamavam-lhe a Pouling e só agora descubro tratar-se do nome de outro inglês que de Londres também mandava na linha.havia descrimina­ção racial nos salários, de um lado pulas, do outro negros e mestiços, tinham o maior clube, com estruturas de lazer, estádio de futebol e piscina olímpica com tabuleta: só é permitida a entrada a brancos. Puseram à Caála o nome de vila Robert Williams mas um grupo de colonos insatisfei­tos com os ingleses, inscrevera­m numa tabuleta em mármore: FUNDADORES DA CAÁLA. E vem os nomes entre os quais um Gavino que deixou descendênc­ia e cuja família registo no meu romance “A casa do rio.” Huambo minha terra pela segunda vez. Na minha infância, a mãe a contar-me que quando meu pai casou com ela em Caconda e depois vieram para Nova Lisboa, ali onde era o quartel de artilharia, perto do coreto onde tocava Sambo, costumavam aparecer onças que se foram afastando. Eu ficava cheio de medo. Ouvia estórias cantadas pela minha avó paterna, kikongo de linhagem que havia sido raptada aos 12 anos por meu avô português, numa coluna de boi-cavalo que demorou dois anos a chegar a Benguela onde meu avô a fez mulher até enriquecer e mandar vir uma branca do puto. A minha infância e adolescênc­ia em subúrbio sem luz elétrica e água canalizada. Na escola, colégio e liceu, vivia entre dois mundos. Meu irmão mais velho levou-me a ver o primeiro asfalto com foguetes e, um dia à noite, fomos à baixa e no bar-restaurant­e de um tal Estima, pelo vidro, vimos pela primeira vez, comerem sorvete. Ainda no fim da minha adolescênc­ia vi homens amarrados em corda a trabalhare­m na abertura de estradas. Meu pai conseguiu a primeira livraria da cidade, “Livraria Brasileira,”junto com ervanária, foi o melhor da nossa vida, meu irmão e minha irmã ainda aprenderam piano… mas a livraria era tida como um centro “contra a situação”, de maçónicos e acabou. Livros e revistas que vinham do Brasil com ajuda de amigos foram para nossa casa e eu devorava no Cruzeiro textos de David Nasser ou da celebridad­e que era Rachel de Queirós que eu e Luandino um dia havíamos de beijar com emoção e carinho. Nova Lisboa crescia. Fazia-se uma casa por dia. A terceira vez, foi quando a rádio portuguesa anunciou terrorista­s vindos do Congo. No dia seguinte, na aula de filosofia eu estava a conversar com uma colega e o professor virou-se para mim aos gritos: com que então agora com o terrorismo vais ser ministro? E não é que fui… A quarta vez foi quando importámos a guerra fria para fazermos a guerra quente e matarmo-nos uns aos outros. Já era o Huambo. O Huambo bombardead­o por aviões. O Huambo com as pessoas a esconderem-se no mato. A guerra parou. Fomos ao Huambo cantar os meninos do Huambo em umbundu por Raúl David e em português por Paulo de Carvalho. Visitámos vários municípios onde reinava a fome visível no edema das crianças de barriga inchada e sem cabelo. Eu ia a chorar emocionado. Foi o meu conterrâne­o, Sebastião Coelho, jornalista que também passou pelos cárceres da pide, que mandava as crónicas da Argentina, quem me socorreu segurandom­e e chamando mais gente. A história é como um moringue de barro escaqueira­do. Por mais que se juntem os cacos nunca fica igual e tão pouco se pode voltar a pôr água. Vi na televisão a narrativa da minha terra toda ela como se fosse um rio com uma corrente serena. As árvores. As pessoas. As casas. Os estudantes. A minha terra é mais bonita assim na tela é mais bonita para as ilusões da esperança. Dapandula!

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola