O algodão não engana
A catadupa de “esclarecimentos”, surgida nos anos mais recentes, no país e lá fora, sobre a forma como, desde a proclamação da Independência Nacional, foram conseguidas tantas fortunas astronómicas, tropeça em factos comprovados que os desmentem.
A imensidão de explicações, feitas, na primeira pessoa ou por outras, amiúde por encomenda, oralmente ou escritas, na forma de entrevistas, comunicados, até em tribunal, sob juramento, fazem lembrar o anúncio antigo de um detergente que demonstrava que o algodão não engana, pelo contrário, põe a nu a sujidade encoberta por mais limpo que pareça o local sobre o qual ele passa.
As justificações de fortunas acumuladas em bancos, bens móveis e imóveis, cá dentro, mas, igualmente, no estrangeiro, revelam, entre outras coisas, a falta de imaginação dos que julgaram estar eternamente imunes à justiça, exibindo acintosa e insultuosamente luxos que jamais imaginaram ter para os quais, ainda por cima, não estavam minimamente preparados.
A dada altura, o poder instituído decidiu que a forma mais rápida de desenvolver Angola era criar uma burguesia endinheirada, desatando a distribuir o que era de todos por alguns - dinheiro, terras, habitações, cargos em empresas públicas e organismos estatais - a parentes e amigalhaços, sem a preocupação sequer de apurar se os “eleitos” estavam minimamente habilitados para mudanças tão radicais de vida.
O “programa” foi, como é evidente, um fracasso, que levou o país quase à bancarrota. Mais grave, acentuou divergências sociais, o fosso entre ricos e pobres e instituiu a ideia de que nem todos tinham os mesmos direitos. Os eleitos não se fizeram rogados em honrar a preferência e desataram - até como demonstração de poder - em estender benesses a quem lhes convinha. O “efeito dominó”, sabe-se, não tem recuo. Era a ameaça de desmoronamento da Angola solidária, sem senhores, nem subjugados, sonhada, durante gerações, por mulheres e homens, de todas as idades, muitos dos quais pagaram essa forma de pensar e agir com tortura, prisão, desterro, a própria vida.
Alguns daqueles lutadores pela Pátria livre do jugo ocupante cederam à atracção pela vida faustosa, entendendo ter direitos especiais em detrimento da maioria dos angolanos, quando, na verdade, tinham deveres acrescidos. O facto de ter participado na luta armada, estado em campos de concentração, noutra qualquer cadeia, clandestinidade ou exílio por causas nobres não basta para alguém requerer privilégios.
Os efeitos do “programa” de criação de castas como forma de desenvolver o país estão patentes no dia-a-dia angolano, com carências de toda a espécie em todos os sectores sem excepção. Os “esclarecimentos”, feitos na primeira pessoa ou por outrem - em comunicados, e entrevistas, faladas ou escritas, somente servem para sublinhar a acção dos que se abotoaram com dinheiro público indiferentes ao sofrimento da maioria da população, agravado nesta fase de pandemia.
A situação que o país vive tem culpados, alguns identificados, outros a identificar. Provavelmente, alguns hão-de conseguir escapar entre as malhas da justiça. Os “esclarecimentos” para surgimento de tantos milionários em tão escasso tempo desde a proclamação da Independência Nacional é que se dispensam, tal como os “arrependimentos” e “lágrimas de crocodilo”. Já farta tanta hipocrisia. Alguém em tão poucos anos consegue juntar, pelo trabalho, tanto dinheiro?
Os “esclarecimentos”sobre o surgimento, do dia para a noite, de fortunas astronómicas apenas fazem recordar o anúncio do detergente que lembrava que o algodão não engana por mais limpo que pareça estar o local por onde ele passa.
A situação que o país vive tem culpados, alguns identificados, outros a identificar. Provavelmente, alguns hão-de conseguir escapar entre as malhas da justiça. Os “esclarecimentos” para surgimento de tantos milionários em tão escasso tempo desde a proclamação da Independência Nacional é que se dispensam, tal como os “arrependimentos” e “lágrimas de crocodilo”