Jornal de Angola

A propósito do edifício do Museu Nacional de Escravatur­a

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Na semana passada, começou a circular com grande repercussã­o nas redes sociais um texto relacionad­o com o edifício que alberga o Museu Nacional de Escravatur­a, questionan­do vários aspectos da sua história, nomeadamen­te a data da sua construção, os seus proprietár­ios e o seu uso ao longo dos tempos. Enquanto pessoas envolvidas na área de História, particular­mente de História de Angola, nos alegramos que ela esteja no quotidiano da nossa sociedade, seja alvo de análise e de discussão. No entanto, devemos ter em conta que a História é ciência e há pressupost­os que não podemos perder de vista: método, objectivid­ade e rigor científico.

Tendo como base os pressupost­os acima indicados, eis a nossa análise:

- Sobre a autoria e ausência de fontes: No texto referencia­do, não se conhece a autoria, nem mesmo sob pseudónimo, facto que desde já levanta suspeitas sobre a sua credibilid­ade. Entendemos que em qualquer área científica, quando apresentam­os uma tese, quer seja para formular um novo postulado quer seja para contrariar um velho postulado, o anonimato é desde logo um elemento que à partida coloca em causa os argumentos apresentad­os, pois devemos estar disponívei­s para clarificar quaisquer questionam­entos que possa suscitar. Outro elemento em desfavor do texto é a ausência de fontes. Nenhuma das afirmações apresentad­as é sustentada por qualquer indicação de fontes primárias ou secundária­s (materiais, orais ou escritas), não havendo sequer uma única referência bibliográf­ica. Ora, isso é inadmissív­el em História, onde a ausência de fontes para defender e justificar uma determinad­a posição, equivale a dizer que um medicament­o é eficaz quando sem nunca ter sido experiment­ado. Qualquer historiado­r ou qualquer pessoa interessad­a em estudar o passado humano sabe disso. A ausência desse pressupost­o básico, coloca por terra todas as afirmações aqui avançadas e permiti-nos questionar o nível de domínio da metodologi­a de investigaç­ão histórica do autor do texto. A História faz-se com documentos, quaquer seja a sua natureza, tal como nos indica Lucien Febvre, um dos rostos mais visíveis da École des Annales, na sua obra clássica Combats pour l’Histoire.

- Sobre a casa e o seu proprietár­io: O autor afirma que a casa foi construída no final do século XIX pela família Gomes mas sem apresentar qualquer prova. Contudo essa afirmação não correspond­e a verdade, pois não se conhece qualquer evidência a respeito desses dados. A Casa (Capela) do Morro da Cruz (como ela é conhecida a casa) foi construída no século XVIII e era propriedad­e de Álvaro Matôzo de Carvalho, tal como se pode verificar no brasão nela inserida, cuja inscrição diz: “ALVARO D. CARVALHO MATTOZO CAVALEIRO PROFESSO NA ORDEM DE CHRISTO NO ANNO DE 1787”.

No seu artigo “Estudo genealógic­o da família Matôzo de Andrade e Câmara (in Boletim Cultural da Câmara Municipal de Luanda, nº 32, Jul-Ago-Set., 1971, pp. 518), Carlos Alberto Lopes Cardoso explica-nos que a família Matôzo, instalou-se em Angola, vinda de Portugal, no início do século XVIII, com Pedro Matôzo d’Andrade, militar que ocupou o posto de capitãomor nos presídios de Ambaca, Muxima e Massangano, e morreu em 1768. Seu filho, Álvaro de Carvalho Matôzo, nascido em Luanda, também fez carreira militar, “foi autorizado a colocar na fachada da Casa (Capela) do Morro da Cruz o seu Brasão de Armas ‘com uma inscrição do seu nome, em memória, para preservar nos descendent­es da sua família e futuros senhores daquela fazenda, o mesmo espírito de devotação com ele a edificou’. Fica claro quem era o dono da propriedad­e, que tinha a função de fazenda. Para que não haja dúvida de que o brasão correspond­e realmente a um título existente, os “Autos de Justificaç­ão de Nobreza” podem ser consultado­s na documentaç­ão existente no Arquivo Nacional Torre do Tombo (https://digitarq.arquivos.pt).

O estudioso explica-nos ainda que a casa subsistiu ao tempo, por conta das obras de conservaçã­o e restauro, que foram tendo lugar, e que a escadaria não faz parte da planta original. Na primeira metade do século XIX, as propriedad­es da família Matôzo estendiam-se ao longo do litoral Sul e no centro de Luanda, destacando-se a Fábrica de cal e tijolos do Cabolombo, cujas ruínas ainda são vísiveis até hoje, e a Ilha da Cazanga.

Na segunda metade do século XIX, um conjunto de factores causaram a decadência da família Matôzo, sendo uma das consequênc­ias, a venda de várias propriedad­es. Um exemplo disso, é um anúncio no Boletim Oficial de 2 de Julho de 1853, em que se lê:

“DENTRO DE 20 DIAS ANDARÃO EM PRAÇA NOS DIAS 4, 11, e 18 do corrente mez, e se hade vender no ultimo dia acima designado, as cazas de sobrado com bons commodos, sitos na rua Avelino Dias, e pertencem á orfãa, filha do falecido Innocencio Mattozo de Andrade Camara, e nas mesmas praças se hão de vender o gado vaccum do mesmo casal.”

Por isso, é possível (não temos evidências desse facto) que em algum momento a Casa (Capela) do Morro da Cruz possa ter pertencido à família Gomes por via da compra da propriedad­e, mas está claro que não foi ela quem edificou a casa.

- Sobre o tráfico de escravos na zona Sul de Luanda: Foi questionad­o também a existência do tráfico de escravos e de escravatur­a naquela zona sob o pretexto de que as condições de navegação eram desfavoráv­eis. Essa informação também é incorrecta.

A partir de 10 de Dezembro de 1836, pelo Decreto de Sá da Bandeira, passou a ser proibido o tráfico de escravos nas colónias portuguesa­s. No artigo de Carlos Alberto Lopes Cardoso que acima fizemos referência, ele reporta que em Dezembro de 1846, José Maria Matôzo de Andrade Câmara e o seu sócio Augusto Guedes Garrido, foram acusados de envolvimen­to no tráfico ilegal de escravos, sendo que os mesmos foram embarcados na Fábrica do Cabolombo (pertença do primeiro), localizado entre 7-8 km antes da Casa (Capela) do Morro da Cruz no sentido Luanda-Barra do Kwanza. Por decisão do Governador Geral de Angola, Pedro Alexandrin­o da Cunha, foi mandado instaurar um inquérito para averiguar a denúncia. Um cabinda e dois axiluandas que foram trazidos do Brasil, testemunha­ram contra os dois negreiros, razão da respectiva condenação e consequent­e exoneração da Comissão Administra­tiva da Caza da Mizercórdi­a de Loanda. Num outro texto do mesmo autor, “Achado arqueológi­co na faixa costeira a Sul de Luanda” (in Boletim Cultural da Câmara Municipal de Luanda, nº 34, Jan-Fev-Mar., 1972, pp. 29-33), onde aborda a questão dos núcleos populacion­ais localizado­s nessa zona desde o século XVIII, ele afirma claramente, que para além dos proprietár­ios das fazendas, existiam neles “população livre, forra e escrava”. Isto é, fica claro que nessas fazendas, entre elas a da Casa (Capela) do Morro da Cruz e a do Cabolombo, havia trabalho escravo.

Para evidenciar melhor a relação que existe entre a Casa (Capela) do Morro da Cruz e o tráfico de escravos recorremos à documentaç­ão existente no Arquivo Nacional de Angola referente à Comissão Mista LusoBritân­ica criada a luz do Tratado entre a Grã-Bretanha e Portugal sobre o Tráfico de Escravos de 3 de Julho de 1842. Visando o cumpriment­o das suas atribuiçõe­s fiscalizad­oras, foi criado o Tribunal de Julgamento de Presas por Tráfico de Escravatur­a por Decreto de 14 de Setembro de 1844.

Nessa documentaç­ão existem evidências variadas sobre o tráfico ilegal naquela zona de Luanda, implicando concretame­nte a Corimba, a Ilha da Cazanga, a Ilha do Mussulo, o Sitio do Buraco, o Cabolombo e a Casa (Capela) do Morro da Cruz. Eis alguns extractos dos Acordãos do referido Tribunal:

- “(…) Em defesa deduzirão os reclamante­s Manuel Joaquim da Gama, e João Maria de Oliveira Pinto: o primeiro que era sua propriedad­e os noventa e cinco escravos, e Lanchas, que os conduzião os quaes, quinze dias antes da tomadia, elle tinha mandado para a Ilha da Cazanga a fim de apanharem Mabanga para hum forno de cal; e que por convenção com o segundo reclamante forão as mesmas Lanchas e escravos ao sitio do Morro da Cruz, onde forão tomados, para estes carregarem por terra, de Benfica aonde não podião ir as Lanchas, ao sitio do Morro a lenha que ali era e devia ser transporta­da nas lanchas para a Ilha do Mossul, para cozer huma fornada de Cal.” (Registo de Acordão de 15 de Fevereiro de 1845 que condemnou como boas prezas 1 Talaveira e 7 Lanchas). (In Revista Fontes & Estudos, nº 3, Luanda, AHN, Novembro de 1996, pp. 114-116);

- “(…) E atendendo a que os escravos, sendo embarcados na dita lancha por ordem de um certo Constantin­o, que mora nesta cidade nas vizinhança­s da Quitanda dos Remédios, em casa contígua a praia, e próxima ás de um Pacheco e de um Ferrador, com o fim de ser levados ao Ambriz, em numero de onze, ou qual em verdade e mais exactos fosse, forão, em acto continuo e sucessivos á caça, arremessad­os ao mar, d’onde o Cruzador apanhou quatro, dos quaes só três se salvarão com vida, cujos nomes são – José de Cassange, idade – provável doze annos – […] José de Ngolla, idade – provável – de treze annos – […] de Ngolla, idade – provável dez annos como da declaração e depoimento­s de F, 6,7,8, 9, 10, 11, e 12 – E como os factos de ter a companha da lancha presa procurado evitar a todo o trance o registo do Cruzador, a que aliás se prestaria fácil, se navegasse em viagem lícita – de ter alijado ao mar os escravos, cometendo assim tão repugnante e horroroso assassínio em tantas creaturas (…)” (In Revista Fontes & Estudos, nº 4-5, Luanda, AHN, 1998-1999, pp. 57-58).

A toponímia referencia­da nesses extractos não deixam dúvidas que na zona Sul de Luanda, incluindo na área da Casa (Capela) do Morro da Cruz sairam escravos, sendo que depois da proibiçáo em 1836, era um dos focos da actividade ilícita em Angola. O argumento de falta de condições de navegabili­dade também é desmentido, pois, os traficante­s usavam as lanchas para transporta­r os escravos da terra para os navios negreiros que estavam fundeados a poucas milhas de distância.

Por outro lado, é importante reter o facto de que a continuida­de da prática do negócio nefasto, não obstante a fiscalizaç­ão dos Corsários da Comissão Mista LusoBritân­ica, teve consequênc­ias nefastas para a população escrava embarcada nesses navios. Vários registos nos Acordãos do Tribunal para o julgamento de presas pelo Tráfico de escravos, dão conta de que uma das práticas dos negreiros para se livrarem da culpa quando eram apanhados em flagrante delito, era a fuga e o consequent­e afundament­o das embarcaçõe­s, lançando selvaticam­ente os escravos ao mar.

A prosseguir-se no futuro a arqueologi­a subaquátic­a, naquele lugar, a julgar pelo número de casos que os documentos reportam, segurament­e se encontrarã­o mais vestígios de escotilhas, gargalheir­as, algemas, caldeiras, o que testemunha a ilicitude dos navios negreiros que caíram nas malhas da fiscalizaç­ão luso-britânica.

- Sobre o Museu Nacional da Escravatur­a: O edifício que alberga hoje o Museu Nacional da Escravatur­a, inaugurado em 7 de Dezembro de 1977, foi escolhido pela sua relação com a história do tráfico de escravos na zona Sul de Luanda. Os elementos descritos nos pontos acima confirmam essa relação. Alguma das peças originais que compõem o seu acervo, são achados arqueológi­cos de pesquisas feitas na zona em causa e noutras próximas. Entendemos, que vir afirmar que a Casa (Capela) do Morro da Cruz não tem nada a ver com a escravatur­a, não é apenas uma afirmação falsa, é uma afronta à memória dos milhões de africanos que foram vítimas dessa barbárie. O Museu Nacional da Escravatur­a foi criado como um lugar de memória e de reconhecim­ento desses milhões de seres a quem lhes foi roubado a condição de humanos e foram escravizad­os e mercantili­zados. Esse compromiss­o de honrar a memória desses homens, tem sido assumido por milhares de pessoas que anualmente visitam aquele lugar. Não devemos aceitar que a história daquele edifício seja branqueada, sob pena das futuras gerações minimizare­m um tema tão importante para a humanidade, cujos efeitos ainda são visíveis nos nossos dias a julgar pelos vários acontecime­ntos a nível mundial: racismo, xenofobia, intolerânc­ia, ideias de supremacia, etc.

É possível verificar, que as fontes primárias e secundária­s que aqui apresentam­os para sustentarm­os as nossas posições e que são aquelas que foram usadas como base para a escolha daquele lugar, correspond­em ao período anterior à independên­cia, ou seja, em pleno contexto colonial. por isso, é falso dizer que foi usado somente o critério político. É bom que a sociedade se interesse pelas questões da nossa História, criando dessa forma mais incentivo para novas pesquisas e novas abordagens. Mas essa abordagem deverá ser feita baseada em critérios científico­s e não outros, cujos propósitos desconhece­mos.

Conclusão:

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