Cooperação Angola-Índia: raízes e perspectivas
A presença colonial portuguesa em Angola e na Índia (Goa, Damão e Dio), associada às legítimas aspirações de liberdade dos respectivos povos, traduziu-se num esteio das relações de amizade e de cooperação entre os dois Estados. Os laços indo-angolanos remontam, por conseguinte, à época da Luta de Libertação Nacional, em que o ano de 1961 foi relevante. E o foi, devido a três acontecimentos, designadamente: i) o início da Luta Armada de Libertação Nacional, a 04 de Fevereiro de 1961; ii) a expansão da Luta Armada de Libertação Nacional a 15 de Março de 1961; e iii) a operação Vijay, protagonizada, pelas tropas indianas, que viabilizaram, a 20 de Dezembro de 1961, o regresso dos enclaves de Goa, Damão e Dio à soberania da Índia, liderada, à época, por Jawaharlal Nehru.
Efectivamente, a decisão de tomada de Goa, mediante uso da força militar, surgiu na esteira das discussões e recomendações do Seminário sobre o Colonialismo Português, realizado, em Nova Delhi e Bombaim/Mumbai, em Outubro de 1961. Numa época em que a onda descolonizadora e de Lutas de Libertação Nacional estava na ordem do dia da agenda político-diplomática global, o dirigente nacionalista Gentil Viana representou Angola naquele Seminário, tendo interagido com líderes indianos do universo político e da sociedade civil. A participação de Gentil Viana no Seminário e as interacções subsequentes com o Conselho Indiano para África lançaram as sementes que germinaram e estabeleceram as raízes da amizade, da afectividade e da solidariedade que, nas últimas 6 décadas, têm enformado as relações entre a Índia e Angola.
Durante a I Guerra de Libertação Nacional, a solidariedade da Índia vis-à-vis o nosso país esteve também evidente na formação, na Academia Militar Indiana de Dehradun, de exímios comandantes guerrilheiros, tais como Elias Gourgel, Fernando Belito e André Monteiro Londres, entre muitos outros. No domínio diplomático, ocorre referenciar que, ao participar na 23ª sessão da Assembleia-Geral da ONU, Indira Gandhi fez questão de enfatizar, em Outubro de 1968, que a Independência e a liberdade da Índia seriam incompletas, se ao povo angolano fosse negado o exercício deste direito inalienável.
Como referiu Agostinho Neto na mensagem que dirigiu aos goeses, a 26 de Novembro de 1962, ‘‘o exemplo do povo goês conferiu ao povo angolano uma maior determinação para a luta, uma maior certeza na vitória final e consciência mais perfeita do estado de composição do colonialismo português.’’
No contexto alentador da descolonização de Goa e, obviamente, dos Congos Brazzaville e Léopoldville/Kinshasa, os factos encaminharam o processo de libertação de Angola sob o mantra da certeza na vitória e da determinação na luta pela autodeterminação e Independência, liderada pelo triunvirato nacionalista, signatário dos Acordos de Alvor. O advento da Independência de Angola inaugurou uma nova era nas relações indo-angolanas, que passou pelo reconhecimento de Angola pela Índia (Fevereiro de 1976) e pelo estabelecimento formal de relações diplomáticas (Junho de 1979), acto que configurou um marco importante no arco da cooperação entre os dois Estados, então liderados por Agostinho Neto e Indira Gandhi.
No último quartel do século XX, a cooperação entre Angola e a Índia foi marcada referencialmente pelas visitas de Estado de Rajiv Gandhi a Angola (Maio de 1986) e de José Eduardo dos Santos à Índia (Abril de 1987). Com efeito, estas visitas traduziram-se no reforço das relações político-diplomáticas e no lançamento dos caboucos da cooperação económico-comercial, que, nos anos 2012-2013 e 2013-2014, atingiu cifras sem precedentes que rondaram os 7.6 biliões e 6.5 biliões USD, respectivamente. A despeito de o nível de cooperação não ter atingido ainda a velocidade cruzeiro, é indubitável que as relações indoangolanas têm evolucionado com rasgos de consistência, sustentabilidade e de abertura para a expansão.
Neste primeiro quartel do século XXI, as relações foram e continuarão sendo pontuadas por um momento positivo, decorrente de dois factos, a saber: a elencagem da Índia, no discurso de tomada de posse do Presidente da República (Setembro de 2017), como um parceiro digno de primazia para o fortalecimento da cooperação com Angola, bem como o encontro de Joanesburgo (Julho de 2018) entre João Lourenço e Narendra Modi. O comprometimento consensual dos dois estadistas com o aprofundamento e a diversificação da cooperação bilateral traduziu-se na realização da I reunião da Comissão bilateral/mista (Setembro de 2020), co-presidida pelos respectivos chefes da diplomacia.
A relevância histórica da Comissão bilateral radica nas excelentes perspectivas de ampliação do escopo da cooperação, para que progressivamente se eleve de transacional para uma parceria estratégica, desancorada do petróleo, através do qual Angola tem contribuído sobremaneira para a segurança energética da Índia. Significativamente, um dos princípios reitores da política africana da Índia estabelece que a parceria para o desenvolvimento é guiada pelas prioridades africanas e construída nos moldes que sejam confortáveis para os africanos e potenciem o futuro de África. Daí que, entre as áreas susceptíveis de alavancar, dinamizar e sustentabilizar a cooperação com a Índia, destaquem-se sectores como: a educação e formação que vão da vocacional e profissional à superior; saúde e indústria farmacêutica; energias renováveis; segurança marítima; tecnologias de informação e telecomunicações; indústrias transformadora, extractiva, espacial e cinematográfica.
Como não podia deixar de ser, a agricultura é um outro foco direccional para a operacionalização da cooperação, devido às vantagens competitivas da Índia neste domínio. Curiosamente, até meados da década de 60, a Índia foi um importador de alimentos por excelência. Para o Governo indiano da época, depender de importações para alimentar o povo representava uma ameaça à segurança nacional. Baseados nesta asserção, os indianos levaram a cabo a sua revolução verde, fruto da qual passaram a garantir a sua segurança alimentar e nutricional, e a exportar produtos agro-alimentares. Em boa verdade, esta circunstância alcandorou a Índia aos dez maiores exportadores de commodities agro-alimentares na escala mundial.
As múltiplas valências da Índia, conjugadas quer com a agenda do Governo angolano na esfera da agricultura, quer com o facto de a melhoria da agricultura em África ser um dos 10 princípios/objectivos que norteiam o engajamento da Índia em África, permitem-nos antecipar que a agricultura e a indústria de processamento alimentar possam alcançar maior proeminência na cooperação indo-angolana, em detrimento da matriz marcadamente energética que a tem caracterizado.
Angola e a Índia têm a tradição de apoiarem-se mutuamente na implementação das suas agendas político-diplomáticas. Esta tradição vem da década de 60, em que alguns movimentos de libertação nacional, sediados em Léopoldville/Kinshasa, mobilizavam nacionalistas angolanos e de outras colónias portuguesas a manifestarem publicamente a sua solidariedade para com o Governo indiano, a propósito da então ocupação colonial de Goa, Damão e Dio. Sendo hoje Estados cultores e promotores activos do multilateralismo e da multipolaridade, Angola e a Índia comungam dos desafios do estabelecimento de uma ordem internacional democrática, justa e representativa. Enquanto a Índia tende a ser, cada vez mais, um actor global com uma dinâmica ascendente na região do Indo-Pacífico, Angola é incontornavelmente um actor subregional quadrimensional (CEAAC, CGG, CIRGL e SADC). No actual quadro geoestratégico mundial, a importância nuclear do Indo-Pacífico e das quatro plataformas subregionais, de que Angola é um actor relevante, proporciona que as relações internacionais e a diplomacia continuem sendo um pilar da cooperação bilateral, baseada na identidade diplomática fundeada nos desígnios da paz, segurança, estabilidade e desenvolvimento sustentável à escala global.
Aquando da sua visita de Estado à Angola, em Maio de 1986, Rajiv Gandhi enalteceu as relações políticas cordiais e estreitas, tendo também dito textualmente que ‘‘we need to give more content to this relationship’’(nós precisamos de conferir maior conteúdo à esta relação). O discurso de tomada de posse do Presidente João Lourenço lançou o mote para a concretização do desejo expresso por Rajiv Gandhi, desejo este que, de resto, enquadra-se plenamente no interesse nacional dos dois países.