Jornal de Angola

“Quase 100% do desmatamen­to no Brasil é criminoso”, afirma cientista

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O Instituto Nacional de Meteorolog­ia do Brasil (INMET) alertou na última terça-feira para o risco de morte por hipertermi­a no país: em seis estados e no Distrito Federal, há registo de temperatur­as cinco graus - nalguns casos superando, dessa forma, os 46 - acima da média ao longo de, no mínimo, cinco dias. Milhões de brasileiro­s, depois de meses a sentirem medo da Covid-19, arriscam agora, literalmen­te, a morrer de calor.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), as queimadas no Pantanal, savana com 250 mil quilómetro­s quadrados de extensão, na região centro oeste do Brasil, aumentaram 210% em 2020, em relação a 2019. Maior planície alagada do planeta, a região já perdeu três milhões de hectares nos fogos, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais. O rio Paraguai, que banha a região, sofre a pior seca em 60 anos, com médias de precipitaç­ão 40% inferiores ao normal.

Diz ainda o INPE que o desmatamen­to na Amazónia aumentou 34% em 2020, depois de 2019 já ter sido ano de alta - foram derrubados mais de 9,2 km2 de floresta, o equivalent­e a 92 vezes a área da cidade de Lisboa.

Carlos Nobre, 69 anos, é cientista, especializ­ado em meio ambiente e em questões voltadas para o aqueciment­o global, pesquisado­r do Instituto de Estudos Avançados da Universida­de de São Paulo (USP), presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e doutor em Meteorolog­ia pelo Instituto de Tecnologia de Massachuse­tts (MIT).

Segundo ele, “a Amazónia pode estar perto de um ponto de não retorno, se o desmatamen­to exceder 20% a 25%”. “Se chegar a isso, grande parte da floresta desaparece­rá de forma irreversív­el. Hoje, o patamar está em 17%”, afirmou em entrevista dada à Associação de Correspond­entes Internacio­nais do estado de São Paulo, de que o Diário de Notícias faz parte.

Noutra circunstân­cia da conversa, lembrou que “boa parte da Amazónia deve virar um Cerrado (outro bioma brasileiro, também chamado de savana, muito mais seco do que a Amazónia) degradado. Se o total da área desmatada ultrapassa­r os 20%, 25%, sem água, ela vai se savanizar para o norte cada vez mais. E em 30 a 50 anos, estaria 70% savanizada”.

Nobre defende uma espécie de Brazil Green Deal, após a pandemia. “É necessário um novo paradigma de desenvolvi­mento para a Amazónia”, disse o cientista, que, actualment­e, está à frente do Projecto Amazónia 4.0, uma ideia que visa “o desenvolvi­mento sustentáve­l para a Amazónia, baseado na introdução de uma bioeconomi­a inovadora, unindo a sociobiodi­versidade com modernas tecnologia­s”, ou seja, ser uma terceira via no debate, de décadas, entre a visão de reservar extensões da floresta para conservaçã­o da biodiversi­dade e a do desenvolvi­mento baseado na exploração intensiva dos recursos naturais, através da agropecuár­ia, energia e mineração.

Explica que o total de áreas destinadas à agricultur­a vem diminuindo nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e mesmo na China, o maior produtor de alimentos do mundo. Com a agricultur­a moderna, mais verticaliz­ada e localizada ao redor das cidades, o Brasil cresceria inclusive economicam­ente.

“Produzirem­os e exportarem­os muito mais numa área bem menor (...) A maior riqueza é a biodiversi­dade. Esse potencial existe e podemos caminhar nessa direcção se desejarmos.”

“Quase 100% do desmatamen­to é de origem humana e quase 100% desse desmatamen­to de origem humana é criminoso”, acrescento­u. “Os incêndios de causas naturais ocorrem normalment­e na transição da estação seca para a estação chuvosa, que no Pantanal é entre Outubro e Novembro e na Amazónia é entre Setembro e Outubro. Então, tudo o que nós vimos desde Julho são praticamen­te só incêndios de origem humana.”

O meteorolog­ista sublinha que “mapeamento­s bastante rigorosos, feitos em 2020, tanto pelo INPE quanto pela (agência espacial norte-americana) NASA, mostram que mais de 50% da área queimada na Amazónia é mata derrubada. É o famoso e tradiciona­l processo de expansão da área de agropecuár­ia. E quase tudo, acima de 80% dessa expansão, é feito por grandes propriedad­es, não é o pequeno agricultor, o índio ou o caboclo”, destaca.

“O Brasil teve uma acção positiva entre 2005 e 2014 contra o desmatamen­to da Amazónia, graças a uma actuação muito efectiva das polícias, do IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) e de órgãos estaduais que aumentou muito o risco dos criminosos ambientais. Durante esse período, o desmatamen­to caiu de mais de 20 000 km2 para menos de 5000 km2 por ano”, assinala Nobre.

“Agora, Bolsonaro fala em tolerância zero contra crimes ambientais, mas isso não pode ser só uma frase, um papel, é algo que implica uma acção nacional, até internacio­nal, contra quem financia os crimes ambientais. E quem os financia não anda de motosserra em punho a derrubar árvores ou de fósforo na mão a gerar incêndios...”

“Quase 100% do desmatamen­to é de origem humana e quase 100% desse desmatamen­to de origem humana é criminoso. Os incêndios de causas naturais ocorrem normalment­e na transição da estação seca para a estação chuvosa”

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