Tentações Perigosas
Nunca nos anos posteriores ao fim da guerra no país os angolanos terão vivido sob tamanha pressão, debaixo de enormes contrariedades, como nestes dias. À atmosfera de receio e de incerteza quanto ao futuro, causada pela ameaça do novo coronavírus, juntam-se as dificuldades diárias para dar provimento às necessidades mais básicas, as chamadas “vitais”, sem a satisfação das quais as pessoas coabitam numa situação de vazio permanente. Ao contexto de crise económica e financeira, que retirou dos cidadãos parte considerável da capacidade de subsistência, veio aliar-se a Covid-19. Esta obrigou a restrições e ao fecho do circuito por onde circulam as trocas comerciais - formais e informais. Desenhouse, em consequência, um quadro de gritantes dificuldades, sobretudo sociais, às quais se vai sobrevivendo com criatividade, imaginação, arrojo e, principalmente, robustez psicológica.
E nos vamos aguentando! Não admira, pois, que nós, angolanos, continuemos a emprestar solidariedade sem que no-la peçam. Malgrado o estado de necessidade em que quase todos nos encontramos, ainda nos resta sensibilidade suficiente para nos condoermos com o padecimento alheio; nos comovermos com o sofrimento do outro e fazermos da dor do próximo a nossa, numa empatia cujos alicerces atravessam séculos, porque construída lá atrás, num passado cultural como só os nossos ancestrais souberam edificar. É a mesma afinidade que nos impele a doar algo do pouco que temos; a visitar enfermos, levando-lhes todo o nosso afecto; a pernoitar, ao relento e desprotegidos das picadas dos mosquitos, defronte a unidades hospitalares, para que o ente internado tenha a resposta possível a uma solicitação médica de emergência. Nem a mais firme garantia de que o hospital tem meios para oferecer ao paciente os cuidados devidos nos faz voltar para casa.
A nossa solidariedade tem mesmo raízes culturais. Choramos a partida de alguém com quem sequer privámos; engajam-nos os pêsames a um amigo ou a uma amiga que conheceu a família enlutada. É àqueles que fazemos companhia nas exéquias; tiramos os nossos últimos mil Kwanzas e os depositamos na lista de contribuições, para ajudar nas despesas que uma morte acarreta, ainda que sirva apenas para mais duas garrafinhas de água. Passamos noites em claro, em velórios, para que parentes próximos tenham o conforto dos amigos no momento de velar o corpo do ente que os abandonou. Foi sempre assim, desde que nos conhecemos como povos, embora a globalização, as trocas culturais, a importação de hábitos, usos e costumes, às vezes de lugares tão diferentes dos nossos, estejam hoje a conspurcar um pouco da nossa forma de viver.
Exercitamos a solidariedade quer em eventos festivos, quer em momentos de pesar, quando a dor da perda parece não ter fim à vista; expressamo-la sempre que a nossa consciência assim o obriga; sempre que sentimos que, da simplicidade do nosso gesto, nasce o consolo de quem precisa de um ombro amigo ou do amparo indispensável para recuperar a estabilidade. Daí que precisamos de nos proteger das tentações perigosas; de lhes resistir. Todos recebemos estes estímulos para actos inapropriados; estes convites à contravenção às normas que regem a existência em sociedade. Mas depende de nós dar-lhes, ou não, provimento.
De facto, hoje, rodeiam-nos, de todos os lados, perigos que nos testam a sensibilidade e a sanidade mental; cercam-nos ameaças à nossa estabilidade psíquica e emocional, colocando à prova a capacidade que temos de amar, respeitar e proteger o próximo. As tentações malévolas pairam como nuvens escuras a anunciar a tempestade que desce para tudo desestruturar, sobretudo o equilíbrio que famílias ainda conseguem conservar. Uma das mais ameaçadoras tentações dos nossos dias é a utilização desenfreada e inconsequente das Redes Sociais, bens maiores do advento das novas tecnologias, mas, infelizmente, transformadas em instrumentos ao serviço do mal, por mentes vocacionadas para dar suporte à perversão.
Admira, pois, que o mesmo povo de vocação generosa e solidária, como parecemos, seja também de tendência ofensora, desrespeitosa e vil. É, no mínimo, esta a leitura que resulta dos vídeos postados em plataformas digitais, nos quais o bom senso é substituído pelo grotesco e a consciência dá lugar à vileza e à brutalização de famílias e da sociedade. As Redes Sociais fazem-nos chegar, quase diariamente, imagens de situações que em nada favorecem o conceito de família que defendemos e a consideração que nos merece um lar, espaço concebido para a educação e a vida em harmonia, independentemente dos eventuais abalos que sofre, ocasionalmente.
Ante os eventos degradantes que nos chegam ao conhecimento pelas Redes Sociais, é urgente questionar a sanidade mental de quem se dedica ao trabalho de os gravar e os disseminar, assim como a daqueles outros que os repassam, como se de conteúdos edificantes se tratasse. Haverá alguma forma de vídeos carregados de imagens tão reles ajudarem uma sociedade? Que vantagens agregam à existência humana? Sequer uma! São apenas imagens exemplificativas da banalização do Ser tido como pensante. Afinal, ao conhecimento público é dado a observar ocorrências que dizem respeito a apenas um restrito grupo de pessoas. Até que ponto interessarão a Angola os problemas familiares ou conjugais de um dos seus milhares de agregados?
São, na verdade, eventos que devem ser mantidos no interior dos metros quadrados onde ocorreram, na esperança de que a solução seja encontrada dentro das quatro paredes, por quem lhes deu vida. Enquanto Seres pensantes, devemos acreditar sempre na capacidade que temos para dirimir desinteligências, sem ser necessário que as espalhemos pelo país, como se estes gestos de baixo jaez gerassem reacções positivas, e não o cortejo de comentários depreciativos, pelo ridículo a que nos expusemos. Desavenças existem em todas as casas e em todos os relacionamentos e é escusado que se conheça o que ocorre dentro do espaço reservado a cada família.
O país e os angolanos têm mais com que se ocupar. E quem tiver excessivo tempo para a ociosidade que o use mais inteligentemente e não a gravar e distribuir futilidades nas Redes Sociais. Uma maneira útil de nos ocuparmos é aprender a solidariedade e a resistir às tentações perigosas, como a de reencaminhar tudo o que nos cai no telefone ou no computador.