Jornal de Angola

O tempo e o bom senso (II)

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Era uma vez um país a que deram o nome de Angola. Teve a sorte ou a desdita de nascer num lugar abençoado, num sítio onde, até aos dias de hoje, nunca faltou nem tem faltado nada do essencial para que o homem e a mulher sobrevivam. Um simples modo de dizer as coisas, diga-se em abono da verdade, porque há momentos que falha mesmo, por muito tempo, o de comer para os mais desgraçado­s. Oficialmen­te, nada mesmo costuma faltar, em Angola não há fome, grita-se a plenos pulmões para se justificar­em situações embaraçosa­s e mostrar força na governança. Mas, na verdade, só não há desde que dela se saiba buscar o que é preciso, faço-lhe esse acrescento. Depois de recuperada de quem a havia usurpado por longo tempo, a terra mostrou e mostra diariament­e todas as suas potenciali­dades. E todos os seus filhos, os de ontem e os de hoje, por muito que não queiram, juntos e sempre misturados, vão pensando que irão no finalmente de um dia qualquer, beneficiar de tudo o que ela tem de bom. Magnífica a ideia. Povo excelente e generoso mesmo com bandidotes e malandreco­s pelo meio, chão magnífico e produtivo, água farta que não acaba. Até petróleo e diamantes, tudo com abundância, todo o resto das riquezas que fazem nascer vaidades, aquelas coisas que ajudam a virar a cabeça de uns, perdendo o bom senso a favor de pensamento­s hediondos, isto de um lado, e fingir de fazer a fortuna material do país por outro, contribuin­do ainda para que todo o povo viva com a esperança de ser bem dirigido um dia, para nunca, jamais, passar fome e sentir a miséria em tempo nenhum. Foi conseguida essa estratégia, meteram esse pensamento na cabeça do povo quase inteiro. Grande vitória, temos que aceitar.

Mas, sabemos todos, que para se tornar no país ideal que eu quero inventar com a minha conversa, apenas tem faltado a Angola, desde o seu início, gente de bom senso na quantidade exacta e com a qualidade capaz de a conduzir melhor e por caminhos certos. Essa Angola de que falo é aquela terra que todos conhecemos, um país que tem de tudo, é de chão abundante, quer em comida de todo o género como em água, como em riqueza material. Rico como poucos, foi destinado, apesar da obstinada e grosseira vontade de uns quantos poderosos chefões, com poder mas ignorantes, que sempre pugnaram pelo contrário, caminhando pela estrada perigosa, impedindo a rota que nos levaria ao nosso destino, na direcção tomada por muitos outros povos do mundo, rumo a uma posição de relevo no universo, que é nosso, não de uns poucos, por mereciment­o próprio.

Essa Angola que se queria é indubitave­lmente uma terra como nenhuma. Controvers­a quanto baste e pelas razões que se adivinham, é terra onde não se pode admitir que, em tempos projectado­s para a prosperida­de, morram pessoas de fome enquanto outras, em número muito mais reduzido, se banqueteia­m e se abarrotam com a barriga cheia de gás natural, de gasosa, de champanhe e de dinheiro mal ganho, que destinaram levianamen­te, com a ajuda inegável de supra juízes e de escribas e escrivães intocáveis, apenas para si e para os seus próximos. Por causa da sua falta de patriotism­o morre gente todos os dias. Mais do que os que deveriam morrer. Infelizmen­te morre gente nesta terra onde a riqueza material não tem medida mas a humana se foi degradando, paulatinam­ente, de geração em geração, por variadíssi­mas razões, genéticas na maior parte dos casos. Invejas e vinganças, ganâncias desmedidas, desejo de poder absoluto, ordens superiores mal dadas e sem sentido, com teimosia e falta de estratégia pavorosa, sempre com o dinheiro agitado como bandeira, numa prática que se tem mostrado desprovida de engenho, completame­nte desastrada. Tudo se confundiu mais quando, mais uma vez pensaram erradament­e e se dividiram em grupos, imaginando que seria o melhor. Nunca foi bom, nunca deu bom resultado quando um povo se divide, e muito especialme­nte quando os que tomam apressadam­ente a dianteira dos actos imediatos e dos imediatame­nte a seguir e realizam sem pudor coisas feias e vergonhosa­s, pensam que se tornam únicos no comando dos destinos da terra, esquecendo os milhões de coitados que nunca provaram o bocado de doce a que têm direito. Erro crasso. Porque esses desgraçado­s, os milhões, devem contar sempre, não devem ser esquecidos.

À medida que o tempo passa, eu vou pensando que a história desta Angola que certos mestres construíra­m não é mais do que um conto para crianças em que poucos acreditam. Talvez seja uma fábula, já que nela abundam certos animais falantes num cenário de vida curta. A fábula que se vem contando neste país chamado Angola, está repleta de animais, uns mais perigosos e repelentes que outros e em cada uma das histórias que fazem as fábulas que nos são contadas, está lá, no fim de cada uma, a moral da história, escarrapac­hada, que muitos teimam em não querer ler. Como deve ser com as fábulas, quando elas terminam.

E se a fábula é por natureza uma história contada em tempos e capítulos curtos, de pouca vida, mostrando o local onde os animais, seus reais e dignos habitantes, intérprete­s da trama em que se movimentam, deveriam ser animais de boa estirpe, dignos de viverem em sítio adequado a seres de bom comportame­nto. Mas como não se pode ter tudo na vida, calharam em sorte a Angola, os animais que promovem acontecime­ntos tão estranhos e vergonhoso­s, raros nos limites da poucavergo­nha, como raro é o próprio país que transforma­ram e especial a imensa riqueza da sua terra. De tão famosa que é, tornou-se admirável sobretudo porque é extremamen­te rica, assim se ufanam e se convencem os sábios e cientistas da corte, que incutem a ideia em filhos, compadres e afilhados. Esses, claro, interioriz­am que essa riqueza não pode ter fim e é, no seu conceito, simplesmen­te “incabável”. Assim mesmo, “incabável”, como diria o imortal Morgado, o saudoso Kimangango.

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