Começar de novo?
Poucas sensações são tão inebriantes como a oferecida pela expectativa de começar tudo de novo. Finais de ano, dias de aniversário, mudanças de moradia ou de emprego trazem frequentemente a ilusão de um libertar de amarras, como se o passado fosse deixar de existir. Os mais sonhadores, como nós, chegam até a querer fazer de cada domingo um novo marco do (eterno) recomeçar. Mas o recomeço deve existir em cada instante da vida.
Como país, a cada 11 de Novembro, atiça-se-nos esta tendência para sonhar com o tão almejado recomeço. Este ano não será diferente, ainda mais com a crise económica, sanitária - e de credibilidade - que nos tolhe. É que não somos dos que associam obrigatoriamente o sonho ao inalcançável. Pelo contrário, sabemos que o sonho é um indispensável gerador de propósitos que motivam a acção, rumo a algo ambicioso.
Visionar o futuro a que aspiramos colectivamente - com lideranças que se afirmam, e partilham a sua visão com a maioria - é um ingrediente indispensável para construirmos a nossa nação, senão numa nova base, pelo menos rumo a uma profunda renovação. E lutar por essa visão, sem esquecer os erros cometidos ao longo do caminho percorrido, é fundamental.
Várias são as lições - algumas dolorosas - que levaremos na bagagem para prosseguir a nossa permanente jornada. Uma primeira, que repetidamente temos de recordar mesmo a nós próprios, é que não há vantagem - nem, quiçá, sabedoria em olhar para a nossa realidade com drama e pessimismo, por muito distantes que estejamos do Pico do morro, daquilo que desejaríamos. Por comparação, imaginemos o quão mais distantes se terão sentido dos seus sonhos aqueles que se sacrificaram na luta pela independência ou os que sofreram durante a guerra civil. E persistiram! É essa independência que celebraremos em breve. E é a paz assim conseguida que nos permite agora protestar e exigir, de uma forma como nunca fizemos antes.
Uma segunda lição é que aqueles que admiramos podem vir a decepcionar-nos amanhã. Depender apenas de indivíduos, sem instituições competentes que regulem a sua acção, deixa-nos a todos numa vulnerabilidade que tem de ser evitada. Esta lição pode ser a de que até os melhores acabam por cair na tentação de priorizarem os seus interesses ao lhes ser dada a possibilidade de exercer o poder de forma prolongada e sem limites. Poder tanto mais propício ao surgimento de uma fauna de parasitas e predadores, quanto mais absoluto for.
Uma terceira, e última lição, que seleccionamos de entre as muitas que poderiam ser aqui discutidas, é que não é justo esperar que se desmonte num ápice o que foi tecido ao longo de décadas. Só a persistência construtiva, e a participação da maioria, poderá corrigir os maus hábitos e erguer progressivamente uma sociedade erigida na base de novos valores.
Com estas e outras lições em mente, concluímos que o nosso recomeçar terá muito de um continuar, revigorados por tudo aquilo que descobrimos e pela consciência de que as transformações têm de ser possíveis e estão ao nosso alcance, desde que nos empenhemos, ajamos colectivamente, organizados e com sentido estratégico.
O recomeçar de que temos repetidamente falado ao longo de múltiplas crónicas é mais uma corrida de fundo do que um sprint. Talvez seja mesmo uma desafiadora combinação de prova de fundo, estafetas, e obstáculos... Não teremos todos a mesma energia ao longo do interminável percurso. Teremos por isso de nos apoiar e encorajar mutuamente nas várias etapas, revezando-nos no papel de quem lidera, inspira, estimula e dá o exemplo - unindo. Sem deixar ninguém para trás. Pois já deixamos tantos...
Corrigir as desigualdades sociais criadas pela concentração de poder e riqueza que continuamos a permitir - vejamos, a título de exemplo, as diferenças no acesso ao tratamento à CoViD - envolve-nos, inevitavelmente, num conflito. Conflito esse que tem de ser transformador e construtivo! O importante é não esquecermos as lições do tempo da guerra, pois destruição já a nossa sociedade teve em demasia. É importante que o conflito seja esgrimido essencialmente dentro das instituições, e pelas instituições. E que no processo se liberte o sistema judicial da tutela dos políticos, permitindo-lhe funcionar como pilar da regulação de disputas e da imposição da lei.
Este inevitável conflito que o país vive é um resultado lógico e compreensível da atribulada caminhada que fazemos desde 1975. Não podia ser de outra maneira: é uma herança que não podemos nem devemos ignorar, mesmo se não podemos deixar de celebrar a independência conquistada. E assim, só nos resta uma atitude nova para avançarmos: promover o debate de ideias, adoptar medidas sócio-económicas mais justas e adequadas, e aprofundar a libertação da opinião pública pela imprensa ou pelas redes sociais, sem temer as manifestações de rua, como reconhece e autoriza a nossa Constituição.
Não é momento (nunca o é…) - por muito incómodos que sejam alguns críticos ou importantes os que são criticados - para retroceder ao ambiente onde a crítica era reservada ao sussurro, à conversa privada, e se exercia a censura e a repressão.
O “recomeço” já começou. Na verdade, e como já o dissemos, nunca pára. Saibamos, pois, alimentá-lo e conduzi-lo com o maior sentido de responsabilidade. Ainda temos muito para caminhar...
Não é momento (nunca o é…) por muito incómodos que sejam alguns críticos ou importantes os que são criticados - para retroceder ao ambiente onde a crítica era reservada ao sussurro, à conversa privada, e se exercia a censura e a repressão