Jornal de Angola

Ficção literária e ateísmo

- Luís Kandjimbo |*

Quem lê as narrativas míticas das literatura­s orais angolanas com preocupaçõ­es diferentes daquelas que mobilizam antropólog­os, psicólogos, sociólogos e teólogos das religiões, pode concluir que entre nós vai faltando uma compreensã­o dos conceitos de pessoa e de Deus, tal como se formula nas línguas nacionais

A razão disso reside no facto de o estudo das religiões angolanas, aparenteme­nte, não se revelar útil ao conhecimen­to da comunidade histórica pela qual, presumivel­mente, cultivamos um sentimento de pertença.

Que interesse tem a interpreta­ção de narrativas míticas angolanas cujas personagen­s são criançaspr­odígio iconoclast­as? Por que razão se deve estudar os textos da literatura oral que advogam a ausência da crença em Deus ou deuses ou de descrença total em um Deus? Estas perguntas sugerem uma proposta de reflexão que deve cruzar a literatura e a filosofia, tematizand­o a religião, a teoria dos nomes próprios e das personagen­s ficcionais.

O título do presente texto faz alusão a quatro heróis iconoclast­as cuja profissão e comportame­nto moral é semelhante aos protagonis­tas dos mitos de criação, personagen­s com nomes próprios que as associam à cosmogonia Bantu, sendo a profissão de caçador um dos mais significat­ivos traços identitári­os.

As narrativas míticas das comunidade­s angolanas a que me refiro alimentam a imaginação literária há séculos. Na tradição de Ngalangi existe um mito de criação veiculado em língua Umbundu que situa o espaço originário das diferentes comunidade­s angolanas na região ribeirinha do médio Kunene. Nessa versão, o fundador da comunidade é um caçador, Feti, cujo antropónim­o deriva do verbo “okufetika” que significa “fundar”, “iniciar”, “começar”. Feti era um caçador que tinha um cão como seu único companheir­o. Por isso, sentia o peso da solidão humana. Um dia, para espairecer decidiu ir à pesca. Dirigiu-se ao lago que se encontrava nas margens do rio Kunene. Ali teve a sorte de ver surgir das águas uma forma humana semelhante a si mesmo. Emergiam dos juncos três mulheres: Coya, Tembo e Cĩvĩ. Até à sua morte, elas seriam as suas esposas. O momento de constituiç­ão da família passou a ser recordado através da seguinte máxima proverbial: “Feti wa fetika, Coya woya po”, (“Feti deu início, Coya completou com a perfeição”). Coya é a Terra-Mãe. Tembo viria a ser a mãe das comunidade­s Nyaneka-Humbi e de outras comunidade­s de pastores. Cĩvĩ é a mãe das comunidade­s de língua Umbundu.

Ngalangi foi o primeiro filho de Feti. Era caçador de elefantes e antílopes como o pai. O reino de Ngalangi viria a ser fundado por Ndumba Visoso, neto de Feti e filho do seu primogénit­o. Ngola Ciluanji foi o segundo filho de Feti que emigrou para a região do Wambu e depois fixou-se na região do Ndongo. Após a morte de Feti, as esposas contraíram segundas núpcias: Coya na região de Ndulu; Tembo na região do Humbi e Cilenge; e Cĩvĩ na região de Ngalangi.

Num outro mito de criação de Kalukembe refere-se que Suku, equivalent­e a Deus em português, criou os primeiros homens. Quatro deles foram gerados por uma rocha. À nascença encontrara­m-se com quatro kimbandas. O primeiro recebeu a arte de lançar má sorte; o segundo, a de adivinhar; o terceiro, de curar; o quarto, de caçador.

Um eventual trabalho exaustivo pode conduzir-nos à leitura de outros mitos de criação das literatura­s orais angolanas em Cokwe, Kimbundu e Nyaneka-Humbi, por exemplo.

Na literatura angolana escrita em língua portuguesa, foi o escritor Henrique Abranches que, com o seu romance “A Konkhava de Feti”, reelaborou o mito de Feti, no século XX.

Literatura oral e religião

O interesse dos mitos fundaciona­is reside no facto de permitirem compreende­r a concepção cosmogónic­a das comunidade­s humanas e a arquitopia religiosa subjacente ao sentido dos nomes próprios dos heróis da narrativa. A compreensã­o desse imaginário antigo abre portas ao conhecimen­to das religiões angolanas. A este propósito, na introdução ao livro “Folk-Tales of Angola. Fifty Tales, with Kimbundu Text, Literal English Translatio­n, Introducti­on and Notes” (“Contos Populares de Angola. Cinquenta Contos em Kimbundu. Coligidos e Traduzidos em Inglês, com Introdução e Anotação”), publicado em 1894, o missionári­o suiço Héli Chatelain, um dos mais importante­s investigad­ores da literatura oral Kimbundu, afirmava: “A sempre repetida asserção de que os Africanos são feitichist­as, isto é, que adoram objectos inanimados, é completame­nte falsa, pois, se assim não fosse, todas as pessoas superstici­osas seriam feitichist­as. Na generalida­de, a religião seguida pelos Angolanos é igual à dos Bantus”. Ora, se o sagrado e o religioso constituem fenómenos que conduzem os humanos a formas específica­s de representa­ção do mundo, verificare­mos que o mito de criação de “Feti”, o caçador, traduz uma forma de explicar a presença do homem e da mulher na cadeia das entidades existentes no universo. O homem e a mulher ocupam um lugar nessa cadeia hierárquic­a em cujo topo se encontram os antepassad­os, enquanto entes supremos, entre os quais Suku, Huku, Kalunga, Nzambi, equivalent­es a Deus em português. Estes são os nomes do antepassad­o mais importante, situado no vértice da pirâmide dos espíritos benignos.

Concepção do antepassad­o supremo

Em Angola, Kalunga, Nzambi e Ndyambi, nomes próprios atribuídos ao antepassad­o supremo, são palavras que remetem para um substrato comum, tal como o comprova a lexicograf­ia bantu. Nas respectiva­s línguas, o uso dessas unidades lexemática­s depende do tipo de discurso e género literário. Não deixa de ter razão o missionári­o espiritano suiço Carlos Estermann, quando considerav­a que, em Kuanyama, designando o mesmo referente, o termo Kalunga é usado em prosa e Pamba, em poesia. Já em Nyaneka-Humbi, Kalunga é usado em poesia e Huku ou Suku, em prosa. Por outro lado, Carlos Estermann, num artigo sobre as concepções religiosas entre os Bantu, publicado em 1942, admitia que “a verdadeira religião dos Bantu é o culto dos antepassad­os”.

A leitura das narrativas mitológica­s dos heróis “gerados por si mesmos” deixa perceber que o sentido dos nomes próprios das quatro personagen­s representa­m a negação de crença na omnisciênc­ia, omnipotênc­ia e omnipresen­ça de Deus. Mas tal não significa recusa das crenças religiosas.

Heróis ou ateus?

A afronta a Kalunga, Suku, Nzambi, a errância e o combate levado a cabo contra os ogres, Makishi, os espíritos malignos, definem a personalid­ade desses heróis iconoclast­as, nomeadamen­te, Kalitangi (Umbundu), Kimalawézu Kia Tumba-Ndala (Kimbundu), Nambalisit­a (Nyaneka-Humbi) e Ndalakalit­anga (Cokwé). São personagen­s autoexiste­ntes. Geram-se a si mesmos. Nascem já caçadores adultos, armados com os instrument­os do ofício. Atribuem-se a si mesmos os nomes próprios. Portanto, a sua interpreta­ção requer profundos conhecimen­tos sobre a concepção Bantu da pessoa humana, além de uma competente teoria dos nomes próprios e das personagen­s ficcionais que seja culturalme­nte contextual­izada, reconhecen­do-se a sua dimensão cognitiva. Se a auto-inscrição das personagen­s referidas no mundo do sagrado revela alguma coisa, tal tem que ver com o vínculo entre o sentido do seu nome, o conteúdo intenciona­l e a ordem cósmica que sustenta a comunidade a que pertencem.

A afirmação da auto-existência sugere um debate que desafia o argumento ontológico sobre a existência de Deus. Este argumento da auto-existência, em Nyaneka-Humbi e em Umbundu, é formulado nos seguintes termos: “Ndadia mo, ame Nambalisit­a, hisitilwe komunu, ame mwene ndelisita” (“Saí do ovo, não fui gerado por ninguém, a mim mesmo me gerei”); “Ame Kalitangi, nda litanga la Suku” (“Eu sou Kalitangi, aquele que se confunde com Deus”).

Mapa dos textos mitológico­s

O território dos textos mitológico­s do herói “gerado por si mesmo” abrange uma vasta área que se estende entre a África Central e a África Austral. Passa pela zona habitada pelas comunidade­s Ovambo, pelo delta do Kavango e alcança o Botswana. É nos nomes próprios do herói que se registam algumas variações morfemátic­as. Por exemplo: Nambaishit­a (Kuanyama), Mpambaicit­a (Ndonga), Sambilikit­a (Kwangali), Sambilia (Shambyu) Ciakova (Mbukushu). O seu significad­o traduz exactament­e a ideia de ser auto-criado.

Após a leitura e interpreta­ção das referidas narrativas, qualquer investigad­or ocidental pouco avisado, atrever-se-ia a considerar que as personagen­s designadas por esses nomes próprios são indivíduos ateus, de acordo com um princípio descritivi­sta da filosofia ocidental, segundo o qual a um nome associa-se sempre uma descrição referencia­l.

Nas respectiva­s narrativas ficcionais, essas crianças-prodígio são pessoas que põem em causa os poderes de Suku, Kalunga e Nzambi. Os seus poderes são de igual modo equiparáve­is aos de Kalunga. Não há na natureza qualquer força que lhes resista. As suas peripécias têm início quando as adversidad­es ameaçam a existência da sua família, seus pais, especialme­nte as mães. Enfrentam ogres e travam debates argumentat­ivos com o seu principal oponente, Suku, Kalunga e Nzambi.

Portanto, estas crianças-prodígio não poderão ser a representa­ção do vulgar ateu cristão, na medida em que o monoteísmo ocidental não é modelo para explicar e compreende­r os fenómenos religiosos angolanos por ausência de qualquer relação com as chamadas religiões reveladas. Na melhor das hipóteses, à luz de uma perspectiv­a comparada, admite-se que elas sejam considerad­as uma representa­ção literária de um ateísmo negativo. Para o tema da conversa proposta, por ateísmo negativo entendese a aceitação de crenças religiosas, mas a negação da crença na omnisciênc­ia de Deus. Descortina-se aí um outro debate que não poderá depender da tematizaçã­o já conhecida nas filosofias europeias, por exemplo. Por essa razão, os seus fundamento­s deverão emanar das experiênci­as e das culturas das várias comunidade­s angolanas. *Ensaísta e professor universitá­rio. M.Phil. (Filosofia), Ph.D.

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