Ficção literária e ateísmo
Quem lê as narrativas míticas das literaturas orais angolanas com preocupações diferentes daquelas que mobilizam antropólogos, psicólogos, sociólogos e teólogos das religiões, pode concluir que entre nós vai faltando uma compreensão dos conceitos de pessoa e de Deus, tal como se formula nas línguas nacionais
A razão disso reside no facto de o estudo das religiões angolanas, aparentemente, não se revelar útil ao conhecimento da comunidade histórica pela qual, presumivelmente, cultivamos um sentimento de pertença.
Que interesse tem a interpretação de narrativas míticas angolanas cujas personagens são criançasprodígio iconoclastas? Por que razão se deve estudar os textos da literatura oral que advogam a ausência da crença em Deus ou deuses ou de descrença total em um Deus? Estas perguntas sugerem uma proposta de reflexão que deve cruzar a literatura e a filosofia, tematizando a religião, a teoria dos nomes próprios e das personagens ficcionais.
O título do presente texto faz alusão a quatro heróis iconoclastas cuja profissão e comportamento moral é semelhante aos protagonistas dos mitos de criação, personagens com nomes próprios que as associam à cosmogonia Bantu, sendo a profissão de caçador um dos mais significativos traços identitários.
As narrativas míticas das comunidades angolanas a que me refiro alimentam a imaginação literária há séculos. Na tradição de Ngalangi existe um mito de criação veiculado em língua Umbundu que situa o espaço originário das diferentes comunidades angolanas na região ribeirinha do médio Kunene. Nessa versão, o fundador da comunidade é um caçador, Feti, cujo antropónimo deriva do verbo “okufetika” que significa “fundar”, “iniciar”, “começar”. Feti era um caçador que tinha um cão como seu único companheiro. Por isso, sentia o peso da solidão humana. Um dia, para espairecer decidiu ir à pesca. Dirigiu-se ao lago que se encontrava nas margens do rio Kunene. Ali teve a sorte de ver surgir das águas uma forma humana semelhante a si mesmo. Emergiam dos juncos três mulheres: Coya, Tembo e Cĩvĩ. Até à sua morte, elas seriam as suas esposas. O momento de constituição da família passou a ser recordado através da seguinte máxima proverbial: “Feti wa fetika, Coya woya po”, (“Feti deu início, Coya completou com a perfeição”). Coya é a Terra-Mãe. Tembo viria a ser a mãe das comunidades Nyaneka-Humbi e de outras comunidades de pastores. Cĩvĩ é a mãe das comunidades de língua Umbundu.
Ngalangi foi o primeiro filho de Feti. Era caçador de elefantes e antílopes como o pai. O reino de Ngalangi viria a ser fundado por Ndumba Visoso, neto de Feti e filho do seu primogénito. Ngola Ciluanji foi o segundo filho de Feti que emigrou para a região do Wambu e depois fixou-se na região do Ndongo. Após a morte de Feti, as esposas contraíram segundas núpcias: Coya na região de Ndulu; Tembo na região do Humbi e Cilenge; e Cĩvĩ na região de Ngalangi.
Num outro mito de criação de Kalukembe refere-se que Suku, equivalente a Deus em português, criou os primeiros homens. Quatro deles foram gerados por uma rocha. À nascença encontraram-se com quatro kimbandas. O primeiro recebeu a arte de lançar má sorte; o segundo, a de adivinhar; o terceiro, de curar; o quarto, de caçador.
Um eventual trabalho exaustivo pode conduzir-nos à leitura de outros mitos de criação das literaturas orais angolanas em Cokwe, Kimbundu e Nyaneka-Humbi, por exemplo.
Na literatura angolana escrita em língua portuguesa, foi o escritor Henrique Abranches que, com o seu romance “A Konkhava de Feti”, reelaborou o mito de Feti, no século XX.
Literatura oral e religião
O interesse dos mitos fundacionais reside no facto de permitirem compreender a concepção cosmogónica das comunidades humanas e a arquitopia religiosa subjacente ao sentido dos nomes próprios dos heróis da narrativa. A compreensão desse imaginário antigo abre portas ao conhecimento das religiões angolanas. A este propósito, na introdução ao livro “Folk-Tales of Angola. Fifty Tales, with Kimbundu Text, Literal English Translation, Introduction and Notes” (“Contos Populares de Angola. Cinquenta Contos em Kimbundu. Coligidos e Traduzidos em Inglês, com Introdução e Anotação”), publicado em 1894, o missionário suiço Héli Chatelain, um dos mais importantes investigadores da literatura oral Kimbundu, afirmava: “A sempre repetida asserção de que os Africanos são feitichistas, isto é, que adoram objectos inanimados, é completamente falsa, pois, se assim não fosse, todas as pessoas supersticiosas seriam feitichistas. Na generalidade, a religião seguida pelos Angolanos é igual à dos Bantus”. Ora, se o sagrado e o religioso constituem fenómenos que conduzem os humanos a formas específicas de representação do mundo, verificaremos que o mito de criação de “Feti”, o caçador, traduz uma forma de explicar a presença do homem e da mulher na cadeia das entidades existentes no universo. O homem e a mulher ocupam um lugar nessa cadeia hierárquica em cujo topo se encontram os antepassados, enquanto entes supremos, entre os quais Suku, Huku, Kalunga, Nzambi, equivalentes a Deus em português. Estes são os nomes do antepassado mais importante, situado no vértice da pirâmide dos espíritos benignos.
Concepção do antepassado supremo
Em Angola, Kalunga, Nzambi e Ndyambi, nomes próprios atribuídos ao antepassado supremo, são palavras que remetem para um substrato comum, tal como o comprova a lexicografia bantu. Nas respectivas línguas, o uso dessas unidades lexemáticas depende do tipo de discurso e género literário. Não deixa de ter razão o missionário espiritano suiço Carlos Estermann, quando considerava que, em Kuanyama, designando o mesmo referente, o termo Kalunga é usado em prosa e Pamba, em poesia. Já em Nyaneka-Humbi, Kalunga é usado em poesia e Huku ou Suku, em prosa. Por outro lado, Carlos Estermann, num artigo sobre as concepções religiosas entre os Bantu, publicado em 1942, admitia que “a verdadeira religião dos Bantu é o culto dos antepassados”.
A leitura das narrativas mitológicas dos heróis “gerados por si mesmos” deixa perceber que o sentido dos nomes próprios das quatro personagens representam a negação de crença na omnisciência, omnipotência e omnipresença de Deus. Mas tal não significa recusa das crenças religiosas.
Heróis ou ateus?
A afronta a Kalunga, Suku, Nzambi, a errância e o combate levado a cabo contra os ogres, Makishi, os espíritos malignos, definem a personalidade desses heróis iconoclastas, nomeadamente, Kalitangi (Umbundu), Kimalawézu Kia Tumba-Ndala (Kimbundu), Nambalisita (Nyaneka-Humbi) e Ndalakalitanga (Cokwé). São personagens autoexistentes. Geram-se a si mesmos. Nascem já caçadores adultos, armados com os instrumentos do ofício. Atribuem-se a si mesmos os nomes próprios. Portanto, a sua interpretação requer profundos conhecimentos sobre a concepção Bantu da pessoa humana, além de uma competente teoria dos nomes próprios e das personagens ficcionais que seja culturalmente contextualizada, reconhecendo-se a sua dimensão cognitiva. Se a auto-inscrição das personagens referidas no mundo do sagrado revela alguma coisa, tal tem que ver com o vínculo entre o sentido do seu nome, o conteúdo intencional e a ordem cósmica que sustenta a comunidade a que pertencem.
A afirmação da auto-existência sugere um debate que desafia o argumento ontológico sobre a existência de Deus. Este argumento da auto-existência, em Nyaneka-Humbi e em Umbundu, é formulado nos seguintes termos: “Ndadia mo, ame Nambalisita, hisitilwe komunu, ame mwene ndelisita” (“Saí do ovo, não fui gerado por ninguém, a mim mesmo me gerei”); “Ame Kalitangi, nda litanga la Suku” (“Eu sou Kalitangi, aquele que se confunde com Deus”).
Mapa dos textos mitológicos
O território dos textos mitológicos do herói “gerado por si mesmo” abrange uma vasta área que se estende entre a África Central e a África Austral. Passa pela zona habitada pelas comunidades Ovambo, pelo delta do Kavango e alcança o Botswana. É nos nomes próprios do herói que se registam algumas variações morfemáticas. Por exemplo: Nambaishita (Kuanyama), Mpambaicita (Ndonga), Sambilikita (Kwangali), Sambilia (Shambyu) Ciakova (Mbukushu). O seu significado traduz exactamente a ideia de ser auto-criado.
Após a leitura e interpretação das referidas narrativas, qualquer investigador ocidental pouco avisado, atrever-se-ia a considerar que as personagens designadas por esses nomes próprios são indivíduos ateus, de acordo com um princípio descritivista da filosofia ocidental, segundo o qual a um nome associa-se sempre uma descrição referencial.
Nas respectivas narrativas ficcionais, essas crianças-prodígio são pessoas que põem em causa os poderes de Suku, Kalunga e Nzambi. Os seus poderes são de igual modo equiparáveis aos de Kalunga. Não há na natureza qualquer força que lhes resista. As suas peripécias têm início quando as adversidades ameaçam a existência da sua família, seus pais, especialmente as mães. Enfrentam ogres e travam debates argumentativos com o seu principal oponente, Suku, Kalunga e Nzambi.
Portanto, estas crianças-prodígio não poderão ser a representação do vulgar ateu cristão, na medida em que o monoteísmo ocidental não é modelo para explicar e compreender os fenómenos religiosos angolanos por ausência de qualquer relação com as chamadas religiões reveladas. Na melhor das hipóteses, à luz de uma perspectiva comparada, admite-se que elas sejam consideradas uma representação literária de um ateísmo negativo. Para o tema da conversa proposta, por ateísmo negativo entendese a aceitação de crenças religiosas, mas a negação da crença na omnisciência de Deus. Descortina-se aí um outro debate que não poderá depender da tematização já conhecida nas filosofias europeias, por exemplo. Por essa razão, os seus fundamentos deverão emanar das experiências e das culturas das várias comunidades angolanas. *Ensaísta e professor universitário. M.Phil. (Filosofia), Ph.D.