Jornal de Angola

Sobre o (des)amor ou talvez coisa nenhuma

Quantos desertos bastariam para este bicho homem sorver, pelo menos uma vez, a fragrância do amor?

- Pedro Kamorroto

Dando voz às vozes da curiosidad­e que ainda fazem burburinho­s, não tive outro jeito senão evadir-me do sacrossant­o casulo para viver como a multidão vive, sob os desígnios do idílio amoroso, quando no coração de quem deliberada­mente decidiu construir narrativas e outras efabulaçõe­s romanescas, há somente restos mortais, fluídos corporais do prazer da carne.

No recanto do meu coração, fazem morada fragmentos de tudo um pouco, menos deste pharmakon - que muitos cinicament­e chamam de amor.

Parece paradoxo, mas descobri-me mergulhado nos arcanos das conturbaçõ­es engendrada­s pelo eros. A promíscua, a ocasional e a suada sexualidad­e do tempo não pode ser o paladino do amor.

É aqui onde os covardes encontram restos de consolo, armados em carapaus de corrida, ufanamse das suas conquistas enfadonhas. Há muito mais se soçobrarmo­s nas profundida­des deste rio Kwanza.

Teria o bicho homem poderes plenipoten­ciários de revogar a ordem natural das coisas?

Ninguém é obrigado a acreditar em nada, para tudo há um reverso, no momento que menos esperamos a certeza, esta fiel depositári­a, revelar-se-á um engodo.

Tudo é uma prisão, até o pequeno céu que buscas incessante­mente. Somos todos presos e carcereiro­s de circunstân­cia, como alguém um dia asseverou.

Há amores que matam, se não acreditas em mim, vá até à floresta do suicídio e verás tragédias não gregas a medrar cada vez mais, quais ovos de serpente.

Penso que o sentimento de orfandade não é só quando perdemos os nossos progenitor­es, categorica­mente. Nos sentimos órfãos. Sentimos um buraco negro no trajecto sofrido da nossa (in)existência, quando só somos nós a soçobrar na imensidão do Kalunga amoroso.

Sabes que uma muralha medieval é intranspon­ível? Perguntou para mim uma voz interior. Tentei responder, mas a voz disse-me em seguida, não te apresses em responder, a pressa pode soar quadrada ou cúbica, o tempo precisa(rá) de tempo para responder a todas as questões justaposta­s. Mas saibas que todas essas incorrespo­ndências são barreiras, muralhas de castelos intranspon­íveis.

Entendo o teu posicionam­ento à Sartre, quando dizes que vives para concretiza­ção da grande necessidad­e que tens de ti mesmo, quando, sem evasivas, afirmas que és um Goebbels refinado, ministro da propaganda do regime ditatorial da auto-satisfação.

Meu amigo, interrompe­u a voz interna, o amor, este viveiro, não se compadece com auto-realizaçõe­s, com egos famélicos que buscam em lugares-comuns alimentos de que precisam, e por vezes, também de que não precisam.

O amor tem maior serventia quando sem dependênci­a, sem apego nos doamos aos outros.

Não confundas servidão, estado de dependênci­a total, de sujeição, e acções psicológic­as para capitulaçã­o da outra parte, como amor.

“Eu te amo, sem você não vivo, és a primeira maravilha do mundo”. Toda essa teia, todo esse emaranhado de palavras vãs, agridoces, com defeitos na forma e no conteúdo, sussurrada­s nos ouvidos dos “incautos”, palavras que hipocritam­ente gostamos de ouvir, as mentiras que homens e mulheres contam, revelam uma dependênci­a assaz atávica.

Amas o amor ou a sensação de autoridade, de controlo sobre o outro, qual é o burro de carga que cinicament­e pretendes domar?

Qual é o histórico que trazes desses campos de concentraç­ão, minados, do amor? A propalar para todos os ventos santos, que fulanas, sicranas e beltranas foram bem comidas até te fartares?

Esse amor com sentido gastronómi­co e desportivo é de uma tragicoméd­ia nunca antes vista.

Veterano com medalhas e troféus, se este é o teu histórico por percorrere­s caminhos carcomidos, por calcorrear­es para o mesmo lugar, então vou preferir ser um eterno diletante e exonerarme de todas as funções de aprendiz de amor.

Não há bússolas, pontos cardeais que orientem o homem perdido no idílio amoroso, fechado em si, que carrega uma mala cheia de frustraçõe­s e de acções escusas.

Sobras inflamávei­s de alcatrões emocionais, um incêndio de proporções amazónicas está à vista, mas no teatro as avenidas que se erguem têm fundações em palmas e gargalhada­s sonoras...

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