Jornal de Angola

CARTAS DOS LEITORES

- JAIME NOGUEIRA PINTO - Lisboa

Jaime Nogueira Pinto responde a Mbeto Traça

Exmo. Senhor Director Costumo seguir uma máxima do Padre António Vieira – “Nada nos afronta quem diz mal de nós mentindo”. Mas porque também, segundo outro clássico, Voltaire, “da calúnia sempre fica alguma coisa”, e pelo respeito que tenho pelos leitores do Jornal de Angola e por muitos amigos e conhecidos que aí tenho, não posso deixar de rectificar algumas afirmações da carta do Sr. general Mbeto Traça, de 28 de Setembro passado, a propósito da minha entrevista a esse quotidiano. Pelos vistos, o Sr. general ficou incomodado com essa entrevista; eu não fiquei incomodado com a carta dele, mas, em atenção aos leitores, quero rectificar algumas incorrecçõ­es – de factos, de datas, de transcriçõ­es abusivas – que, por me dizerem respeito, tenho o dever e o direito de esclarecer: 1. A propósito da criação da FRA (organizaçã­o incipiente a que o general atribui consistênc­ia e dimensão), cita o meu livro Jogos Africanos, descontext­ualizando e retirando aspas à expressão pretos bons, usada ironicamen­te na sequência de uma reflexão crítica sobre o imaginário literário e cultural de África e dos Africanos, a partir de livros como As Minas de Salomão. 2. Sobre a história do ataque à Vila Alice, segundo a enviesada narrativa do general Traça: “Foram os homens da FRA, envergando uniformes idênticos aos usados pelas FAPLA, que atacaram uma patrulha do Exército português e que foi o pretexto para o ataque que os portuguese­s, sob comando do Coronel Almendra fizeram ao COL do MPLA na Vila Alice, onde foram mortos 14 camaradas, entre os quais Nelito Soares, no dia 27 de Julho de 1974”. O ataque foi a 27 de Julho de 1975, e não a 27 de Julho de 1974, estando eu fora de Angola desde 5 de Outubro de 1974, com um mandado de captura do COPCON. O que na realidade se passou vem narrado pelos generais Gonçalves Ribeiro (A Vertigem da Descoloniz­ação, pp.316-317), Silva Cardoso e Almendra em diversos escritos, e nos jornais da época, que o Sr. General podia ter consultado: um jeep do Exército português, que circulava próximo do Comando Militar das FAPLA, na Vila Alice, foi intercepta­do por militares das FAPLA (e não por “homens da FRA, envergando uniformes idênticos aos usados pelas FAPLA”). O condutor e o Sargento que ali seguiam identifica­ram-se e foram mandados seguir. Mas quando arrancaram, um militar das FAPLA disparou e feriu gravemente o Sargento. As autoridade­s militares portuguesa­s exigiram a entrega do culpado para ser julgado de acordo com o Código de Justiça Militar. Houve contactos nesse sentido com a direcção do MPLA, entre o tenente-coronel Almendra, então comandante do COPLAD, e o Eng. Henrique Santos (Onambwe); na ausência de resposta, houve então um ataque à Vila Alice, em que morreram 14 elementos das FAPLA e 22 ficaram feridos. Do lado português houve 4 feridos. Os responsáve­is do MPLA, na época, considerar­am “os incidentes politicame­nte sanados”. 3. O general Traça põe-me, só e mais nada, a “liderar a task force de Savimbi na Europa”; e, mais uma vez mal informado, localiza-me durante as eleições de 1992 em Luanda. Ora, entre Outubro de 1974, quando saí de Angola, e Março de 1996, quando lá voltei a convite do general João de Matos para falar aos oficiais generais das FAA, não estive uma única vez em Luanda. 4. O Senhor general deve ter visto, talvez em sonhos, as fotografia­s que tenho no meu escritório, onde não me lembro de alguma vez o ter recebido. Descreve-me a substituir convenient­emente a fotografia do Dr. Savimbi por uma outra com o general João de Matos, com quem eu teria iniciado “lucrativos negócios”. Quem conhece de facto o meu escritório sabe que a fotografia que tenho com o Dr. Savimbi lá continua, e no mesmo sítio, a par de muitas outras: com os generais Ndalu e Nunda, o vice-Presidente Bornito de Sousa, Jaka Jamba, Vitorino Hossi, Abel Chivukuvuk­u; com o Papa João Paulo II, Álvaro Cunhal, Afonso Dhlakama; com os Presidente­s Nixon, Chissano, Guebuza, Sassou Nguesso, Pedro Pires; e com muitas outras pessoas, ilustres e menos ilustres. Não costumo retirar fotografia­s. Modificar o passado é um hábito estalinist­a que não pratico. 5. O general João de Matos foi um grande homem de guerra e de paz, e tive a honra de o ter por Amigo, mas nunca tive com ele negócios em Angola. Tenho amigos, muitos, de várias orientaçõe­s e partidos políticos. Nunca troquei uns pelos outros. Toda a história da minha relação com Angola, nas Forças Armadas portuguesa­s, no Verão de 1974, nos anos da Guerra Civil, depois da paz, está contada no livro Jogos Africanos, que teve e tem uma vasta divulgação em Portugal e em Angola. Sempre admirei Angola e os Angolanos pelo modo como puseram fim a uma guerra de tantos anos. Como dizia Renan, as pátrias fazem-se da memória e também do esquecimen­to e por isso nos podemos tornar amigos-irmãos dos nossos exinimigos. Mas, pelos vistos, há quem não pense assim. Para acabar: publiquei aqui este esclarecim­ento em atenção, não tanto aos meus amigos de Angola, que me conhecem bem, mas aos leitores do Jornal de Angola. Não faço contas de, com isto, iniciar qualquer polémica. Ou seja, não tenciono voltar a responder ao general Traça. Basta o que basta. Com amigos cumpriment­os

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola