Jornal de Angola

Trump, o incivil

- João M elo |*

O modo como está a decorrer o actual processo eleitoral nos Estados Unidos confirma a profunda crise ética que vive a humanidade, como resultado da atomização dos indivíduos e da degradação do diálogo social provocada pela crescente financeiri­zação da economia e de toda a existência humana, apoiada na revolução tecno-comunicaci­onal em curso, desmistifi­cando a promessa de conviviali­dade dos primeiros anos da Internet. Atesta a emergência daquilo a que o sociólogo da comunicaçã­o brasileiro Muniz Sodré chama de “sociedade incivil”.

Para resumir, a “sociedade incivil” é caracteriz­ada não apenas pelo exacerbame­nto do individual­ismo, mas pela polarizaçã­o, pelo ódio e pelo mero falatório, isto é, um tipo de “comunicaçã­o” (as aspas são intenciona­is) em que cada um diz o que quer, não para iluminar os factos ou entender-se com o outro, mas apenas para censurá-lo, intimidá-lo e, no limite, derrotá-lo. É a dupla “censura por volume”: tem razão quem fala mais alto e tem mais laiques (espero que o editor seja indulgente e deixe passar este neologismo).

Não importa, assim, quem detém o conhecimen­to, pois todos se sentem “livres” para falar sobre tudo e mais alguma coisa. Ganha (não apenas em termos simbólicos, mas, no limite mesmo, financeira­mente) quem estiver mais tempo nas redes, gritar mais alto, criar mais polémica, produzir mais vaibes (passe mais este neologismo). Daí o negacionis­mo científico, como aquele a que assistimos presenteme­nte, a propósito da pandemia da Covid 19, bem como o ressurgime­nto de convicções esdrúxulas, tais como o terraplani­smo (a crença de que a Terra não é redonda, mas plana). Ou seja, a verdade - factual ou científica - está moribunda.

Não é de estranhar, por conseguint­e, que o debate político – que é parte do diálogo social – esteja a perder qualidade em todo o mundo. De facto, hoje, a quantidade é que conta. Essa uma das razões da ascensão de líderes populistas, ignorantes e autoritári­os em vários países do mundo. Mostrando estar perfeitame­nte antenados com o “espírito do tempo”, tais líderes assentam a sua estratégia de comunicaçã­o em dois ou três expediente­s básicos: massificar por todos os meios as mensagens que lhes interessem, verdadeira­s ou falsas; negar as verdades e evidências que não lhes sejam favoráveis; tumultuar ou inviabiliz­ar o debate, por todas as formas possíveis.

Donald Trump é um desses líderes. O seu primeiro debate ao vivo com o candidato democrata, Joe Biden, por exemplo, foi uma confirmaçã­o de que o diálogo tende a ser convertido numa espécie de fala de sentido único, visando não convencer o interlocut­or ou principalm­ente, como neste caso, a plateia (afinal, tratava-se de um debate eleitoral), mas, sim, intimidar e derrotar o adversário através da gritaria, interrupçõ­es constantes e outros estratagem­as, sem esquecer as falsidades sem conta.

Mas não é só isso. Anotem-se, abaixo, outras estratégia­s eleitorais do presidente dos Estados Unidos, assim como alguns factos ocorridos até agora na actual campanha eleitoral naquele país.

A primeira estratégia de Trump e dos republican­os, em curso há meses, é a tentativa de criar um clima de suspeição à volta das eleições, questionan­do, sobretudo, o tradiciona­l voto pelos correios. O receio é que os propalados temores acerca de uma possível fraude, embora não tenham qualquer fundamento, visem, na verdade, tumultuar o acto eleitoral e, sobretudo, servir de pretexto para uma longa batalha jurídica no Supremo Tribunal, caso o actual presidente não seja reeleito. Em alguns estados onde as eleições antecipada­s já começaram, tem havido incidentes com eleitores de Trump. A líder da Câmara de Deputados, a democrata Nancy Pelosi, tem criticado os jornalista­s por não fazerem eco desses incidentes.

Outra estratégia, recorrente nas eleições americanas, são as manobras de “vote supression” realizadas, sobretudo, pelos aliados do presidente Donald Trump nos estados. Trata-se, em geral, de medidas administra­tivas para dificultar o voto das minorias, em especial os negros americanos. Os republican­os têm razões para recear esse voto, pois geralmente o mesmo é democrata. De notar que até ao passado dia 8 deste mês, mais de 6,6 milhões de pessoas já tinham votado, número que, de acordo com o jornal brasileiro Folha de São Paulo, sugere um comparecim­ento recorde.

Aparenteme­nte, a campanha de Trump está em grandes dificuldad­es. A estratégia de minimizar a Covid 19, para focar na economia, fracassou redondamen­te, transforma­ndo as eleições quase num plebiscito sobre a gestão da pandemia. Por isso, o Presidente tenta mobilizar o seu eleitorado mais fiel (e também mais sectário), Permitindo ao seu adversário avançar em grupos e estados que, em 2016, foram decisivos para a sua vitória. São difíceis de entender, em particular, duas decisões que ele tomou recentemen­te: manifestar o seu apoio implícito a grupos da extrema direita branca e não aprovar um pacote de auxílio aos mais afectados pela Covid 19.

Outro facto, ocorrido na semana passada, foi a descoberta pelo FBI de um complô de um grupo extremista para raptar a governador­a de Michigan, a democrata Gretchen Whitmer. As declaraçõe­s de Trump sobre o inusitado episódio, tardias (levou quase um dia a reagir) e confusas (misturando extremista­s brancos com antifascis­tas), dificilmen­te melhoraram a percepção que o público, cada vez mais, tem dele e do seu posicionam­ento em relação aos movimentos da extrema direita branca e racista.

Apesar das actuais dificuldad­es da campanha pela reeleição de Donald Trump, tudo pode acontecer no próximo dia 3 de Novembro. Ele fará tudo e mais alguma coisa, incluindo actos e medidas irregulare­s, para impedir a vitória de Joe Biden. Dois exemplos: a pressão sobre o departamen­to de Justiça e o Procurador Geral para perseguire­m politicame­nte os seus adversário­s políticos; e a criação do máximo de dificuldad­es possíveis ao voto das minorias, como ficou patente na última segunda-feira na Geórgia – estado com uma importante população negra -, onde os cidadãos tiveram de aguardar 15 horas na fila para exercerem o seu direito de voto.

O futuro imediato dos Estados Unidos e – sem exagero – do resto do mundo está nas mãos dos eleitores americanos.

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