Trump, o incivil
O modo como está a decorrer o actual processo eleitoral nos Estados Unidos confirma a profunda crise ética que vive a humanidade, como resultado da atomização dos indivíduos e da degradação do diálogo social provocada pela crescente financeirização da economia e de toda a existência humana, apoiada na revolução tecno-comunicacional em curso, desmistificando a promessa de convivialidade dos primeiros anos da Internet. Atesta a emergência daquilo a que o sociólogo da comunicação brasileiro Muniz Sodré chama de “sociedade incivil”.
Para resumir, a “sociedade incivil” é caracterizada não apenas pelo exacerbamento do individualismo, mas pela polarização, pelo ódio e pelo mero falatório, isto é, um tipo de “comunicação” (as aspas são intencionais) em que cada um diz o que quer, não para iluminar os factos ou entender-se com o outro, mas apenas para censurá-lo, intimidá-lo e, no limite, derrotá-lo. É a dupla “censura por volume”: tem razão quem fala mais alto e tem mais laiques (espero que o editor seja indulgente e deixe passar este neologismo).
Não importa, assim, quem detém o conhecimento, pois todos se sentem “livres” para falar sobre tudo e mais alguma coisa. Ganha (não apenas em termos simbólicos, mas, no limite mesmo, financeiramente) quem estiver mais tempo nas redes, gritar mais alto, criar mais polémica, produzir mais vaibes (passe mais este neologismo). Daí o negacionismo científico, como aquele a que assistimos presentemente, a propósito da pandemia da Covid 19, bem como o ressurgimento de convicções esdrúxulas, tais como o terraplanismo (a crença de que a Terra não é redonda, mas plana). Ou seja, a verdade - factual ou científica - está moribunda.
Não é de estranhar, por conseguinte, que o debate político – que é parte do diálogo social – esteja a perder qualidade em todo o mundo. De facto, hoje, a quantidade é que conta. Essa uma das razões da ascensão de líderes populistas, ignorantes e autoritários em vários países do mundo. Mostrando estar perfeitamente antenados com o “espírito do tempo”, tais líderes assentam a sua estratégia de comunicação em dois ou três expedientes básicos: massificar por todos os meios as mensagens que lhes interessem, verdadeiras ou falsas; negar as verdades e evidências que não lhes sejam favoráveis; tumultuar ou inviabilizar o debate, por todas as formas possíveis.
Donald Trump é um desses líderes. O seu primeiro debate ao vivo com o candidato democrata, Joe Biden, por exemplo, foi uma confirmação de que o diálogo tende a ser convertido numa espécie de fala de sentido único, visando não convencer o interlocutor ou principalmente, como neste caso, a plateia (afinal, tratava-se de um debate eleitoral), mas, sim, intimidar e derrotar o adversário através da gritaria, interrupções constantes e outros estratagemas, sem esquecer as falsidades sem conta.
Mas não é só isso. Anotem-se, abaixo, outras estratégias eleitorais do presidente dos Estados Unidos, assim como alguns factos ocorridos até agora na actual campanha eleitoral naquele país.
A primeira estratégia de Trump e dos republicanos, em curso há meses, é a tentativa de criar um clima de suspeição à volta das eleições, questionando, sobretudo, o tradicional voto pelos correios. O receio é que os propalados temores acerca de uma possível fraude, embora não tenham qualquer fundamento, visem, na verdade, tumultuar o acto eleitoral e, sobretudo, servir de pretexto para uma longa batalha jurídica no Supremo Tribunal, caso o actual presidente não seja reeleito. Em alguns estados onde as eleições antecipadas já começaram, tem havido incidentes com eleitores de Trump. A líder da Câmara de Deputados, a democrata Nancy Pelosi, tem criticado os jornalistas por não fazerem eco desses incidentes.
Outra estratégia, recorrente nas eleições americanas, são as manobras de “vote supression” realizadas, sobretudo, pelos aliados do presidente Donald Trump nos estados. Trata-se, em geral, de medidas administrativas para dificultar o voto das minorias, em especial os negros americanos. Os republicanos têm razões para recear esse voto, pois geralmente o mesmo é democrata. De notar que até ao passado dia 8 deste mês, mais de 6,6 milhões de pessoas já tinham votado, número que, de acordo com o jornal brasileiro Folha de São Paulo, sugere um comparecimento recorde.
Aparentemente, a campanha de Trump está em grandes dificuldades. A estratégia de minimizar a Covid 19, para focar na economia, fracassou redondamente, transformando as eleições quase num plebiscito sobre a gestão da pandemia. Por isso, o Presidente tenta mobilizar o seu eleitorado mais fiel (e também mais sectário), Permitindo ao seu adversário avançar em grupos e estados que, em 2016, foram decisivos para a sua vitória. São difíceis de entender, em particular, duas decisões que ele tomou recentemente: manifestar o seu apoio implícito a grupos da extrema direita branca e não aprovar um pacote de auxílio aos mais afectados pela Covid 19.
Outro facto, ocorrido na semana passada, foi a descoberta pelo FBI de um complô de um grupo extremista para raptar a governadora de Michigan, a democrata Gretchen Whitmer. As declarações de Trump sobre o inusitado episódio, tardias (levou quase um dia a reagir) e confusas (misturando extremistas brancos com antifascistas), dificilmente melhoraram a percepção que o público, cada vez mais, tem dele e do seu posicionamento em relação aos movimentos da extrema direita branca e racista.
Apesar das actuais dificuldades da campanha pela reeleição de Donald Trump, tudo pode acontecer no próximo dia 3 de Novembro. Ele fará tudo e mais alguma coisa, incluindo actos e medidas irregulares, para impedir a vitória de Joe Biden. Dois exemplos: a pressão sobre o departamento de Justiça e o Procurador Geral para perseguirem politicamente os seus adversários políticos; e a criação do máximo de dificuldades possíveis ao voto das minorias, como ficou patente na última segunda-feira na Geórgia – estado com uma importante população negra -, onde os cidadãos tiveram de aguardar 15 horas na fila para exercerem o seu direito de voto.
O futuro imediato dos Estados Unidos e – sem exagero – do resto do mundo está nas mãos dos eleitores americanos.