“Covid-19 não é pandemia, mas sindemia”
Quando a questão é o SARS-CoV-2 nada é totalmente objectivo e o vírus ainda está envolto numa 'aura' de complexidade
Desde Março, altura em que foi declarado o estado de pandemia global pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que várias medidas têm sido adoptadas por governos e entidades de saúde de modo a evitar a disseminação da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2.
"Todas as nossas intervenções se concentraram em cortar as rotas de transmissão viral para controlar a disseminação do patógeno", escreveu num editorial Richard Horton, editor-chefe da revista científica "The Lancet".
Todavia, quando a questão é o SARS-CoV-2 nada é totalmente objectivo e o vírus ainda está envolto numa 'aura' de complexidade.
Segundo um artigo publicado na BBC News, para Horton, existe o novo coronavírus e simultaneamente múltiplas doenças não transmissíveis. Sendo que esses dois aspectos interagem num cenário social e ambiental no qual se destaca uma desigualdade social marcante. Esse panorama, argumenta Horton, aumenta a influência dessas patologias e, como tal, é necessário, de acordo com Horton, encarar a Covid-19 não como uma pandemia, mas sim como uma sindemia. "A Covid-19 não é uma pandemia, mas sim uma sindemia", declara.
Sindemia não é um conceito recente e trata-se, conforme explica a BBC, de uma expressão que junta os termos sinergia e pandemia.
Originalmente foi formulado pelo antropólogo médico norte-americano Merrill Singer, na década de 1990, com o intuito de elucidar uma realidade na qual "duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças". Por outras palavras, a realidade social com que vivem os seres humanos faz com que não seja somente uma comorbidade.
O termo foi cunhado quando Singer e outros investigadores estavam a estudar o uso de drogas em comunidades pobres nos Estados Unidos. Tendo descoberto que muitos dos utilizadores de substâncias injectáveis sofriam de outras doenças, nomeadamente de tuberculose, obesidade, doenças sexualmente transmissíveis, etc. A partir dessa constatação, os cientistas questionaram-se como essas patologias e condições coexistiam no organismo, concluindo que muitas vezes essa junção multiplicava e exacerbava os danos para a saúde.
Entretanto, quando o assunto é a Covid-19 "vemos como interage com uma variedade de condições pré-existentes (diabetes, cancro, problemas cardíacos e muitos outros factores) e vemos uma taxa desproporcional de resultados adversos em comunidades desfavorecidas, de baixa renda e de minorias étnicas", conta Singer.
Isto é, patologias tais como a obesidade ou diabetes — factores de risco para a Covid-19 — são mais prevalecentes em pessoas que pertencem a estratos sociais mais baixos, diz TiffAnnie Kenny, investigadora da Universidade Laval, no Canadá, em declarações à BBC News.
E se pensarmos, afirma Kenny, que tal ocorre na maioria das vezes com a maioria das doenças, estas têm um impacto mais elevado em pessoas mais vulneráveis, mais pobres, com uma saúde mais frágil, com menos habilitações académicas, condições de vida, alimentação e higiene.
Relativamente ao cariz social, o elemento-chave no caso de uma sindemia é que esta combina a interacção de múltiplas patologias.
Mudar a estratégia de intervenção e de tratamento
Segundo Kenny, ver a pandemia como uma sindemia permite deixar para trás a "abordagem clássica da epidemiologia ao risco de transmissão para uma visão da pessoa no seu contexto social".
“O impacto dessa interacção também é facilitado pelas condições sociais e ambientais que, de alguma forma, aproximam essas duas doenças ou tornam a população mais vulnerável ao seu impacto”, refere Singer.
E esta conclusão é comum a inúmeros cientistas que crêem que, para travar a propagação e impacto do novo coronavírus, é essencial ter em conta as condições em que vivem as populações mais economicamente desfavorecidas e procurar vias para solucionar esse problema.
"Se realmente quisermos acabar com esta pandemia, cujos efeitos têm sido devastadores nas pessoas, na saúde, na economia ou com futuras pandemias de doenças infecciosas (vimos uma após a outra cada vez mais frequente: SIDA, Ébola, SARS, zika e agora a Covid-19), a lição é que temos que lidar com as condições subjacentes que tornam um sindicato possível", afirma Singer.
“Temos que lidar com os factores estruturais que dificultam o acesso dos pobres à saúde ou a uma alimentação adequada”, acrescenta à conversa com a BBC News.
Para Richard Horton, o editor-chefe da revista Lancet, a conclusão é óbvia: "não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protectora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a Covid-19 vai falhar".
"A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, as nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da Covid-19", conclui.