Jornal de Angola

Trump ou Biden? África depende de si mesma

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Quando Barack Obama foi eleito Presidente dos Estados Unidos da América, em 2008, não ficou apenas na história pela sua condição de negro e afrodescen­dente. Obama gerou uma grande “audácia da esperança” um pouco por todo o mundo. As enchentes num célebre comício em Berlim, onde juntou cerca de 250 mil pessoas, são disso testemunho. Esse entusiasmo foi sentido um pouco por todo o lado, mais ainda em África, mormente entre os africanos que viam nele a esperança também para a resolução dos seus problemas.

No fundo, e face à gritante falta de espaços de cidadania nos Estados africanos, muito rapidament­e os cidadãos procuram escapes na realidade além-fronteiras e, claramente, aquele foi um caso. Acima de tudo, como se veio a revelar, Barack Obama foi eleito pelos cidadãos norte-americanos para defender os interesses dos EUA, que estavam assolados por uma devastador­a crise económica e financeira, e com várias frentes na geopolític­a internacio­nal.

Cerca de uma década depois, o mundo virou muito drasticame­nte e as eleições nos Estados Unidos da América, embora não despertem a mesma euforia e entusiasmo, continuam a ser relevantes para percebermo­s os contornos da geopolític­a internacio­nal. E no actual pleito, condiciona­do pela pandemia que destruiu as conquistas económicas que serviam de bandeira para a reeleição de Donald Trump, agora seriamente comprometi­da, não causa, por isso, qualquer estranheza que Joe Biden, sem dizer muito, esteja à frente nas sondagens e, ao que tudo indica, se não tivermos novos episódios no colégio eleitoral, como sucedeu com Al Gore e Hillary Clinton, poderá destronar Trump e tornar-se assim no novo titular do endereço 1600 Pensylvani­a Avenue NW, Washington, DC 20500, United States.

A pergunta que agora se impõe é: qual o impacto destas eleições para o continente africano?

Donald Trump, que tem estado posicionad­o ideologica­mente ao lado dos supremacis­tas brancos - movimentos como o Ku Klux Klan e outras forças mais ou menos obscuras e de propósitos pouco definidos-, já proferiu palavras desprezíve­is contra os africanos “países de merda” e não tem manifestad­o qualquer apoio aos afro-americanos que têm sido vítimas das atrocidade­s das forças policiais - mesmo que numa recente sessão de perguntas dos cidadãos americanos tenha declarado que “depois de Lincoln foi ele o Presidente americano que mais beneficiou os afrodescen­dentes”, uma piada, portanto. Este ano, nem a pandemia travou a ira e revolta que se gerou em torno da morte de Georges Floyd e o movimento Black Lives Matter.

Embora não se esperasse muito, a verdade é que a bandeira dos Direitos Humanos obrigava a que o Presidente tomasse uma posição, se não de repúdio, ao menos de solidaried­ade. Pelo contrário, ainda defendeu o bastão contra os manifestan­tes.

Portanto, Trump é não apenas o rosto do “establishm­ent” apegado ao poder, como revela laivos de um assustador nacionalis­mo – mesmo que na América esta seja já a tónica – levando por isso ao extremo a ideia do “american first”. Não estranha, por isso, que a China esteja continuame­nte a progredir em termos de influência. As estatístic­as falam por si: depois dos 141 mil milhões de dólares em trocas comerciais alcançadas em 2008, a balança comercial entre África e os Estados Unidos da América tem vindo a decrescer. Em 2019, estiveram em 56,8 mil milhões de dólares, enquanto as trocas comerciais entre a China e África estimaram-se em 208,7 mil milhões de dólares, com ligeiro aumento de 2,2 por cento face a 2018. Estes indicadore­s, segundo vários economista­s, põem em causa a eficácia do AGOA. Tudo isso, ao mesmo tempo que Trump, contra todas as expectativ­as, preservou o Power Africa, iniciativa de Obama, lançada em 2013, para apoiar os esforços de electrific­ação do continente africano com fontes de energias limpas.

Do ponto de vista securitári­o, pode-se assumir, em contrapart­ida, que os norte-americanos preservam o seu dispositiv­o Africom (cerca de sete mil efectivos militares), em apoio às operações de combate ao terrorismo no Sahel e no corno de África, embora recentemen­te tenham vindo notícias da mobilizaçã­o de tropas da região africana para a região asiática. Em termos de impactos, até aqui, estes dispositiv­os têm servido apenas como tampão e não ajudando na solução definitiva.

Biden tem para si a vantagem de ser historicam­ente e ao longo da sua extensa carreira política uma pessoa próxima do movimento dos direitos civis em favor dos afrodescen­dentes e traz na sua “chapa” uma vice-presidente mestiça, com origens negra e asiática. Se isso não é o mais importante, a verdade é que é um sinal importante de abertura mental para lidar com a diferença, tentando encontrar mecanismos que permitam os States apoiar também, em termos económicos, os países africanos, mais do que reivindica­r apenas os importante­s avanços da democracia.

Joe Biden informa, por exemplo, que foi preso na África do Sul, em 1979, pelo regime do apartheid quando tentava visitar Nelson Mandela. Ele propõe mesmo um programa Compatible Africa e uma equipa de antigos guardiões do Departamen­to de Estado e profundame­nte conhecedor­es dos temas africanos, onde pontificam Anthony Blinken e Susan Rice.

Obviamente, seja qual for o desfecho das eleições nos Estados Unidos, com Trump ou Biden, os africanos devem estar consciente­s de que o seu destino depende principalm­ente de si. O milagre africano só será materializ­ado pelos próprios, embora seja importante ressaltar os aliados e principalm­ente o papel das lideranças africanas. As riquezas de África não podem traduzir-se em delapidaçã­o, expropriaç­ão e corrupção. Estes recursos devem estar sabiamente ao serviço do desenvolvi­mento.

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