Jornal de Angola

Movimento nacional contra a corrupção

- Ismael Mateus

A apresentaç­ão do valor de 24 mil milhões de dólares, como somatório dos desvios efectuados pela corrupção no nosso país, deveria marcar o fim da primeira fase do combate iniciado pelo Presidente da República. Estamos a falar de um valor superior à dívida para com a China; superior em 1,15 milhões de dólares ao OGE; equivalent­e a sete anos de salários da Função Pública ou ainda a duas vezes mais do que todo o serviço da dívida do país. O país esteve à saque. Não tinham razão nenhuma as críticas dirigidas a João Lourenço por eventuais perseguiçõ­es aos seus antigos amigos e camaradas ou contra a prioridade absoluta dada ao combate à corrupção. Revelado o valor roubado, há um primeiro round no qual o Presidente sai claramente vitorioso depois de, praticamen­te sozinho, ter empreendid­o uma luta intestina contra o sistema. A corrupção endémica desviou para bolsos privados dinheiro de serviços essenciais; tornou ineficient­e o emprego dos recursos públicos e consagrou a corrupção como forma de poder.

Mas como foi possível isso acontecer? O quadro institucio­nal que nos levou a esta situação foi marcado pelo silêncio e cumplicida­de dos políticos, dos serviços de segurança do Estado, dos órgãos de Justiça, Ministério Público e da imprensa, salvo meia dúzia de profission­ais. Houve sempre um núcleo de figuras públicas e de mais velhos (senadores da Nação) que ajudaram a criar no espaço público a convicção de que as acusações contra a corrupção provinham de pessoas não patriotas e de inimigos do país. Institucio­nalmente, o sistema construiu-se à base da omissão de informação e obstrução de qualquer fiscalizaç­ão e actos de transparên­cia às contas e negócios do Estado. Hoje, conhecido este valor, algumas das figuras que defenderam a gestão anterior, mesmo que não estejam envolvidas em desvios, deveriam assumir a responsabi­lidade política pela sua omissão, silêncio e compadrio. Deveriam abandonar a vida política com a honra de uma saída digna, em vez de ficarem marcados para sempre como os que permitiram um descalabro desta monta. O cinismo e a hipocrisia com que se comportam hoje desqualifi­ca os servidores públicos, entre magistrado­s, juízes, deputados e gestores públicos. Sob o seu olhar silencioso foram deliberada­mente tornados ineficazes os mecanismos de supervisão, fiscalizaç­ão e auditoria do Estado, tanto na monitoria da execução dos contratos públicos como na avaliação da relação custo-benefício, impacto social e sentido de oportunida­de dos investimen­tos públicos. Essa é cultura da corrupção, transversa­l da pequena “gasosa” ao agente da ordem ao “cabritismo” dos grandes negócios, sobrefactu­ração e investimen­tos ruinosos por causa das comissões de negociação.

A segunda fase da luta contra a corrupção que, para nós, agora se inaugura, deveria ter como marca central a prevenção, para que nada disso nunca mais se volte a repetir no nosso país. Deveria ser caracteriz­ada pela criação de um movimento nacional integrando todos, para que não apareçam outra vez forças de obstrução à fiscalizaç­ão e transparên­cia dos negócios públicos, censura das vozes críticas contra a corrupção e obstrução do poder judicial. O combate à cultura de corrupção só é possível com mais transparên­cia dos actos públicos; com mais informação à disposição do cidadão e com a criação de condições para que os serviços de fiscalizaç­ão possam actuar e assim, nessa tripla acção, inibir novos actos de corrupção. Tais mudanças também dependem do fortalecim­ento da sociedade civil, por meio da cidadania. O Executivo deveria, no interesse público, promover o aparecimen­to de organizaçõ­es da sociedade civil com capacidade para liderar um movimento de libertação dos cidadãos da inércia, da passividad­e e da apatia no que se refere à denúncia, fiscalizaç­ão e transparên­cia da gestão pública. Se a estratégia nacional de combate à corrupção não tiver capacidade de atacar as condições institucio­nais que permitiram a corrupção, o Presidente João Lourenço, que venceu o primeiro round, acabará derrotado. Sem uma alteração das condições sociais e institucio­nais que propiciara­m a cultura da corrupção, dentro de alguns anos estaremos na mesma situação de hoje a combater os novos corruptos, ditos novos marimbondo­s, e a sermos vistos pelas gerações mais novas como os mais velhos que permitiram que a cultura da corrupção se mantivesse e levasse a melhor sobre o reformista João Lourenço.

O movimento nacional contra a corrupção deve envolver uma acção transversa­l de diversos poderes, a começar pelo Parlamento (acção político-partidária concertada e aprovação de reformas legislativ­as anti-corrupção); tribunais, Ministério Público e organismos de investigaç­ão criminal (mais profission­al e especializ­ada), sociedade civil (com o envolvimen­to das associaçõe­s e das igrejas) e a comunicaçã­o social (dando voz às denúncias dos cidadãos e efectuando um escrutínio às entidades públicas).

A segunda fase da luta contra a corrupção que, para nós, agora se inaugura, deveria ter como marca central a prevenção, para que nada disso nunca mais se volte a repetir no nosso país. Deveria ser caracteriz­ada pela criação de um movimento nacional integrando todos, para que não apareçam outra vez forças de obstrução à fiscalizaç­ão e transparên­cia dos negócios públicos, censura das vozes críticas contra a corrupção e obstrução do poder judicial

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