A Bolívia no centro do furacão?
E de repente, não mais que de repente, a Bolívia, tão abandonada e subestimada no concerto das nações, pode passar a ter agora uma grande importância estratégica. A razão de ser dessa repentina mudança tem o nome de um mineral: lítio. Como se sabe, o mesmo é cada vez mais procurado para ser utilizado nas baterias dos carros eléctricos, computadores e equipamentos industriais. Acontece que o pequeno país andino é detentor das maiores reservas mundiais de lítio.
No último domingo, 18 de Outubro, realizaram-se na Bolívia eleições para presidente, vice-presidente, senadores e deputados, convocadas para tentar solucionar o imbróglio causado pela disputa eleitoral ocorrida em 2019 e que levou à renúncia do então presidente Evo Morales. As eleições foram ganhas pelo candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luís Arce, aliado de Morales, por uma maioria indiscutível: 52 por cento. A organização manteve igualmente a maioria na Câmara de Deputados e no Senado.
Desta vez, a clara vitória de Luís Arce e do MAS foi rapidamente reconhecida quer pelas instituições bolivianas quer pelos seus opositores. Em 2019, como se sabe, as eleições foram ganhas por Evo Morales, que cumpriria assim o seu quarto mandato, mas contestadas pela direita, sob a acusação de fraude. Os militares, apoiados pelas forças policiais, não hesitaram em intervir para impedir a confirmação da vitória de Morales, obrigando-o a renunciar e exilar-se na Argentina.
A suspeita de fraude foi levantada pela Organização de Estados Americanos (OEA), acusada de ser um mero instrumento da administração norte-americana. Nos primeiros dias, criou-se um autêntico movimento global de repúdio ao então presidente e, portanto, de apoio ao golpe, constituído por instituições internacionais, potências regionais e até figuras mundiais consideradas progressistas. Sol (melhor, eclipse) de pouca dura. Poucos meses depois, instituições idóneas, como lembrou o pesquisador brasileiro Mathias de Alencastro na sua coluna no jornal Folha de São Paulo, demonstraram “de forma inequívoca” que a fraude eleitoral supostamente cometida pelo governo de Evo Morales “não passava de uma fantasia”.
A Bolívia entrou, então, num período de turbulência e confusão, que durou praticamente um ano. Nesse período, os dirigentes interinos do país começaram a privatizar empresas estratégicas, abandonaram importantes obras de infraestruturas e retomaram a sua tradicional política de discriminação sistemática dos indígenas bolivianos. Cito novamente Alencastro: - “O espectáculo de incompetência, corrupção e autoritarismo do último ano contribuiu para aumentar a rejeição do governo Añez (Jeanine) Áñez, ex-presidente interina]”. Por seu turno, o MAS deu uma lição de paciência, mobilização e estratégia, que lhe permitiram retomar o poder democraticamente no passado domingo.
Internamente, o regresso do MAS ao poder, um ano depois do golpe militar que derrubou Evo Morales, significa a possibilidade de retomada do processo por ele iniciado em 2006, a fim de mudar radicalmente a face histórica do país, pondo pela primeira vez as necessidades e interesses das classes mais desfavorecidas, inclusive a maioria indígena, no centro da política nacional. Com efeito, mais de 85% da população boliviana é de origem indígena, mas só com a chegada do MAS e de Morales ao poder, há 14 anos, o país teve um presidente, deputados, ministros, governadores e outros dirigentes políticos oriundos da sua maioria étnica. Além disso, a orientação das medidas económicas, sociais, culturais e outras tomadas pelos sucessivos governos do MAS, durante os três mandatos de Morales, sempre foi de esquerda.
Evo Morales, recorde-se, foi o primeiro e único indígena a chegar ao cargo máximo num país da América do Sul, região cujas classes dominantes são herdeiras históricas dos antigos colonizadores. Essas duas circunstâncias (o facto de ser indígena e de esquerda) certamente não são do agrado daqueles que há séculos estavam (e, na generalidade, continuam a estar) no poder.
Do ponto de vista regional, a expressiva vitória do candidato do MAS, Luís Arce, nas eleições do último domingo na Bolívia pode reforçar os sinais já ocorridos no ano passado, com a vitória da dupla Fernández-Cristina na Argentina, criando uma tendência de reversão da viragem à direita na América Latina iniciada pelo golpe constitucional que fez cair a presidente brasileira Dilma Rousssef, pondo fim a 13 anos de poder do Partido dos Trabalhadores. Compreende-se, por isso, a satisfação da maioria das forças progressistas da região com o retorno do MAS ao poder.
Mas mais importante ainda será a possível repercussão global da vitória de Luís Arce. Voltemos ao lítio. A política de Evo Morales – de quem Arce foi ministro das Finanças durante 10 anos - em relação ao lítio era clara: o seu controlo devia permanecer nas mãos do Estado boliviano. Por isso, em Julho deste ano, ElonMusk, director executivo da Tesla e da Space X, respondeu assim no Twitter a um post sobre o interesse dos Estados Unidos em apeá-lo do poder: "Daremos um golpe em quem quisermos! Lidem com isso".
Esperemos para ver o que decidirá Arce em relação a este assunto fulcral.