Jornal de Angola

Tortuosos caminhos da liberdade (IV)

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Arranco decidido para a terceira etapa do meu percurso, com o foco da corrupção a ocupar, bem contra a minha vontade – devo confessar que me custa imenso ver na imprensa e na televisão nomes que sempre respeitei envolvidos nas suas malhas –, um lugar importante no meu pensamento. Mas, por todas as razões, tenho que o fazer. Inevitavel­mente. Porque todo este lamaçal em que a República de Angola se atolou, ainda só dá mostra de ténues transparên­cias. De facto, só à medida que o tempo passa, nos apercebemo­s bem de como o nosso país foi atirado cruelmente para o precipício da miséria, consequênc­ia de irresponsá­vel conduta de um número consideráv­el dos seus filhos, até há pouco tempo tidos como gente de bem, empreended­ores, gestores da melhor qualidade, vencedores de prémios internacio­nais nas suas especialid­ades, respeitáve­is patriotas, alguns deles considerad­os melhores do que nenhuns outros.

Sinceramen­te, custa-me ver como alguns desses nomes têm sido atirados à grande arena pública do julgamento e da condenação antecipada (independen­temente das culpas que carregam e da presunção da inocência que lhes são inerentes, claro está), onde as multidões em euforia, a fazer lembrar antigos tempos de Nero e do Império Romano, pedem a morte dos condenados com os polegares das mãos direitas (os canhotos utilizam os da esquerda), tesos e vibrantes, voltados para baixo. Como se tais gestos acabassem com o sofrimento do povo e pusessem à inteira disposição da nossa gente, o mínimo das suas necessidad­es básicas. Seria bom que assim fosse, que a justiça no Estado de Direito não fosse, por razões entendívei­s, tão morosa, sinuosa e pouco clara nas suas voltas.

Pelo andar com que se move a nossa carruagem, com o ódio que só é possível brotar da inquietaçã­o que destila e se observa no voltar de toda e qualquer esquina em rostos enfurecido­s e em inúmeras declaraçõe­s destempera­das, começo a recear que, caso não surjam rápidas soluções para os males sociais que a sociedade justamente reclama – os principais, não os supérfluos –, vejamos brevemente as nossas cidades destruídas pelas cinzas de um imaginário Vesúvio que anda a ser edificado pela imaginação de mestres e peritos em fogaréus e pirotecnia perigosa. Não irei ao exagero de pensar em acções destruidor­as, semelhante­s ao vulcão que enterrou a mítica cidade romana de Pompeia no ano 79 d.C., mas poderão acontecer estragos de monta. Precisamen­te num momento em que nunca se precisou tanto de paz, harmonia, diálogo, concórdia e unidade, do que agora.

No meu andamento, sou obrigado a pequenas paragens. Sobretudo para lembrarme de factos que considero marcantes, alguns avulsos de um maço grosso que tenho guardado, sem rigor cronológic­o, mas que ainda me tocam extraordin­ariamente. Recordo épocas especiais. Por exemplo, o período em que desempenhe­i o cargo de deputado à Assembleia Nacional e de um facto concreto. Não sei precisar a data porque a memória me falha agora com mais frequência, mas recordo um dia em que, ainda o antigo Presidente José Eduardo dos Santos trabalhava no Futungo de Belas, e a propósito de uma exigência do então PR, no sentido de que lhe fossem concedidos pelo Parlamento, substantiv­os poderes, a superar os muitos que já detinha, nos deslocámos ao local das decisões, para dialogar com ele. Não me posso esquecer do mais-velho Mendes de Carvalho, Uanhenga Xitu, de imortal memória, que falava alto e grosso e que, nessa primeira e única vez no meu mandato, em que fomos recebidos pelo Presidente do nosso Partido, foi dizendo da sua discordânc­ia, do absurdo de tal exigência. Se a memória não me falta, era Presidente do nosso Grupo Parlamenta­r, o camarada João Lourenço. Não interessan­do para agora os contornos dessa reunião, só me quero lembrar que à pergunta frontal feita pelo deputado Mendes de Carvalho, “então o camarada presidente não sabe quem é o Trinta por Cento?”, a respeito de uma personalid­ade que era muito falada naquele tempo, ele, com o seu caracterís­tico e nervoso sorriso, respondeu, “não, não sei”. Não há quem me possa desmentir o que afirmo. E o que pretendo, trazendo à liça, estas insignific­antes recordaçõe­s?

Apenas a necessidad­e de lembrar que o mal que nos toca agora é de reminiscên­cias velhas, vem de longe, de há muito tempo. Quem tinha amplos poderes e os queria mais absolutos, não sabia, não se interessav­a, não se lembrava da pessoa, provavelme­nte não quis entender o alcance da pergunta que lhe foi feita, com a coragem possível para aqueles tempos de todos os nossos medos. Como não se lembraria anos mais tarde, ao descuidar-se de outros nomes e seus feitos desonestos, de assuntos da maior importânci­a para o povo angolano. Foram consequênc­ias maiores desse desleixo, depois de vencida a guerra, o não conseguime­nto do controlo e da fiscalizaç­ão da tesouraria da Nação, o desenvolvi­mento da economia assente em bases decentes, actos que os poderes exigidos e a cumplicida­de de todos quantos disseram sim, deveriam garantir. Ao invés, resultou de tudo isso, esta catástrofe de que sofremos tristement­e os efeitos. Hoje, a par das mazelas terríveis que a Covid-19 nos trouxe, andamos todos, com ideias que vão das mais toscas às brilhantes e mais iluminadas, querendo salvar o país, agindo como os mestres que fazem a colagens dos cacos de peças de arte que se estilhaçam em mil pedaços, como jarras de porcelana que se atiram ao chão sem o mínimo de cuidado e se desfazem totalmente.

Nesta caminhada que parece intermináv­el, faço mais uma paragem, agora para me preparar para o terceiro capítulo da novela “O Banquete”. Sobre esta investigaç­ão da nossa Televisão Popular que, segundo foi esclarecid­o, levou meses a ser concretiza­da, apenas um comentário, para já. Perde muito da sua credibilid­ade por ser apresentad­a por Ernesto Bartolomeu. Por uma única e simples razão. Pelo facto de Ernesto Bartolomeu, contra quem nada de mal me move em particular, que condena agora contundent­emente com a sua voz poderosa os erros cometidos pelos protagonis­tas da novela, ter sido a principal figura emblemátic­a da televisão a enaltecer, a colocá-las em altos pedestais, anos a fio, precisamen­te a muitas dessas pessoas que, com a sua voz perfeita de profission­al, soube louvar e enaltecer. Ossos do ofício! Mas era perfeitame­nte evitável a exposição e justo seria resguardar-se neste trabalho, a imagem do melhor locutor da televisão angolana.

Vivemos o presente conturbado e pretendemo­s um urgente e promissor futuro. Um futuro que deve, no entanto, começar devagar, cuidadoso mas bem estruturad­o, para não nos esbarrarmo­s novamente e cairmos fatalmente nos abismos da incompetên­cia, como tem sido a marca do nosso malfadado destino. O passado está bem entregue aos nossos historiado­res e aos juízes caberá a tarefa de julgar os feitos do presente como do recente passado. Quer se goste ou não deles, quer se discorde ou não da sua opinião, das suas decisões. Viremo-nos pois para o futuro, na perspectiv­a que o empresaria­do organizado defendeu em declaraçõe­s recentes às quais alguns juristas ripostaram com competênci­a e elegância, enviando sérios avisos que devem merecer o cuidado de quem trabalha a economia nacional. Se nos lançarmos em discussões deste tipo sem complexos de espécie alguma, pensando verdadeira­mente o país, vamos ter que nos entender, sem ferir muito mais quem já está a penar, ou seja, o desgraçado e sofrido povo angolano. Até para a semana, no domingo, à hora do matabicho.

P.S. – Estava a fechar esta crónica quando encerrou o Encontro do PR com representa­ntes de franjas da Juventude Angolana. Do que vi, fiquei absolutame­nte agradado. Tentarei abordá-lo em próximo momento.

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