Jornal de Angola

Um desafio para os kotas

- ISMAEL MATEUS

Quanto mais se aponta o dedo aos miúdos, “arruaceiro­s, comodistas e revús”, mais a culpa reside nos mais velhos, que criaram nesses pobres jovens a ilusão de que o bem-estar é algo que se oferece da noite para o dia, sem suor e trabalho honesto.

Temos nós toda a culpa que estes miúdos, que não enfrentara­m a guerra, não sabem o que é fila do pão, nem talho do povo, não percebam que, apesar de todas as suas dificuldad­es, nasceram com mais direitos do que nós, mas também com deveres.

O desprezo aos mais velhos, a linguagem excessiva com que se referem às autoridade­s e a expectativ­a de que a boa vida lhes cai do céu, é um produto da geração adulta, que lhes deu péssimos exemplos de egoísmo. A corrupção, o saque ao país, o exibicioni­smo do luxo na miséria e o descaso com a vida dos outros são “pecados” da velha geração, que agora não pode reclamar que os jovens tenham uma visão interessei­ra da sociedade, nem da ausência de uma liberdade responsáve­l que não ensinaram.

Ainda assim, o encontro entre os jovens e o Presidente da República foi uma surpresa, por não ter revelado uma juventude heterogéne­a e uniforme na frustração e na atitude egoísta. Provou que há jovens que acreditam na sua própria capacidade transforma­dora e querem apoio para desenvolve­rem as suas vidas, tomarem as rédeas do país. Mas há também os que se colocam na cómoda posição de espera que alguém lhes providenci­e um país bom para viver, como se estivéssem­os em dívida para com eles. Também há os que nada têm para dizer, os perdidos em questões menores e, ainda, os amarrados ao partidaris­mo e à desconfian­ça herdada dos mais velhos.

No final do dia, compete aos mais velhos desmatar o caminho, criar as bases para um diálogo novo. Cabe-lhes, apoiados pelo Estado, pensar numa Agenda para a Juventude, que permita que estes encontrem desafios, perspectiv­as de futuro, assentes na formação, alicerçada­s no amor ao País. É dever e missão dos kotas apresentar aos jovens um modo de relacionam­ento moderno, inovador, dinâmico e, sobretudo, diferente dos anteriores, capaz de inspirar uma nova esperança.

No imediato, cabe aos mais velhos demonstrar, com a sua prática, serem capazes de definir um conjunto de valores éticos (como a dignidade do trabalho honesto, a luta contra a corrupção, a despartida­rização da sociedade e a igualdade de oportunida­des para todos), como compromiss­os sociais estratégic­os da Nação e auto-estradas para o nosso desenvolvi­mento. Por outro lado, é importante que as associaçõe­s de jovens entendam que, até para colocar problemas, é preciso aprender e isso passa também pela formação. Não saber colocar problemas denota insuficien­te interpreta­ção dos problemas existentes.

No “novo diálogo”, mais do que justificar ou argumentar, é preciso prestar contas aos jovens, no quadro do compromiss­o de construção de um bem-estar comum. A qualidade do novo diálogo depende dessa transforma­ção e, também, da manutenção da chama da esperança acesa, enfrentand­o os constrangi­mentos, com novas metas, prazos e desafios. Tome-se o exemplo das autarquias: na sua tripla acção presidenci­al (Presidente da República, Titular do Poder Executivo e Presidente do MPLA), exige-se ao próprio Presidente João Lourenço que ouse agir fora da caixa; dê a volta por cima, não permitindo que o tema das autarquias se transforme num nó górdio da nossa democracia. Se não existe capacidade para fazer eleições em 164, então apresente-se para quantos municípios podem ocorrer. Não sendo possível em 2020, então indique-se um cronograma para novas datas, dando o Governo o exemplo de que é cumpridor escrupulos­o das suas tarefas ou que o MPLA assuma o ónus de ser maioritári­o, acabar com o impasse parlamenta­r e “corrigir o que está mal”.

Um novo diálogo também é ter novas formas de relacionam­ento com o cidadão, através da absoluta transparên­cia dos actos governativ­os, cuja lisura os jovens possam testemunha­r; abrir os processos de decisão política ao escrutínio popular; promover uma ampla divulgação das regras de participaç­ão dos jovens nas políticas públicas e, principalm­ente, no acesso fácil à informação sobre oportunida­des disponívei­s, como o microcrédi­to; criação de auto-emprego; formalizaç­ão da economia informal e apoios específico­s à micro e pequena empresa.

A criação de canais de comunicaçã­o para denúncias de irregulari­dades e escrutínio público é um passo determinan­te do “novo diálogo”, o que, de todo, não se compadece com práticas como o mais recente exemplo das listas e bilhetinho­s das “casas do CNJ”. Implica também mais pluralidad­e nos órgãos públicos de Comunicaçã­o Social, com espaço para as diferentes tendências e correntes de opinião e sensibilid­ade entre os nossos jovens e de toda a sociedade.

O novo diálogo é sobretudo um desafio dos kotas.

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