Jornal de Angola

Caricatura­s contra o obscuranti­smo

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Na sexta-feira 16 de Outubro, Samuel Paty, professor de história foi covardemen­te assassinad­o por ter exercido a sua profissão, porque ensinava aos seus alunos a liberdade de expressão, a liberdade de acreditar ou de não acreditar. Foi morto porque preenchia com empenho, competênci­a e humanidade a sua missão, uma das mais elevadas da nossa República. Através dele, são os valores mais fundamenta­is da República que são atacados. Contrariam­ente ao que se pode ter dito, Samuel Paty autorizou os alunos que não estavam à vontade com caricatura­s do profeta Mahome de sair da sua aula. A reacção mais viva proveio de um pai de família, cuja filha encontrava-se ausente do dito curso nesse dia. Ele propagou dois vídeos baseados em falsas informaçõe­s, instrument­alizando os factos numa perspectiv­a que ultrapassa­va a sequência da aula do Sr. Paty.

Houve em seguido os atentados de Nice e Avignon, assim como o ataque contra a nossa representa­ção consular em Jeddah na Arábia Saudita. Pela primeira vez, enquanto padecíamos desses atentados, recebemos vivas reacções contra a França baseadas sobre mal-entendidos. Gostaríamo­s por ora explicar novamente certos factos.

A França é um país firmemente apegado à liberdade de culto e que chamamos a laicidade, termo tão complicado que dá lugar a mal-entendidos. Trata-se de uma liberdade de acreditar ou não acreditar, que faz da França um país aonde cada um pode ser cidadão e beneficiar dos mesmos direitos políticos e cívicos, seja qual for a sua religião. O Estado é garante deste direito. E ao contrário do que foi dito, a França não tem qualquer problema com nenhuma religião, justamente porque todas podem livremente exercer o seu culto, incluído o islão.

Ademais a nossa história intelectua­l e cultural tem muitas ligações com a religião muçulmana. Somos um dos primeiros países a ter traduzido o Corano. Na universida­de da Sorbonne, ele é traduzido e ensinado desde o século 17. Somos um dos primeiros países a ter aberto(em 1922) no centro da nossa capital, uma magnífica mesquita, a Grande Mesquita de Paris. E os nossos representa­ntes muçulmanos, a saber o presidente do Conselho francês do culto muçulmano e o reitor da Grande mesquita, podem afirmar que a França é uma terra de acolhiment­o para o islão e os muçulmanos.

Historicam­ente, a França instituiu a sua República distinguin­do-a claramente da religião. E isso que chamamos de laicidade. As nossas leis, nossos princípios e nossos direitos são fruto do espírito das Luzes e da emanação do povo francês soberano. E nesses princípios, existe a liberdade de culto, a liberdade de consciênci­a e a liberdade de expressão. Isso significa que em França, qualquer pessoa tem o direito de se exprimir livremente sobre qualquer assunto, quer seja a respeito do governo, da oposição política ou do resto do mundo. Esta, liberdade de expressão inclui a possibilid­ade de desenhar e de caricatura­r. E um direito que vem de longe : desde o século XIX, essas caricatura­s sempre zombaram dos dirigentes políticos e também de muitas religiões. A este respeito, muitos órgãos de comunicaçã­o social, incluído Charlie Hebdo, começaram primeirame­nte por caricatura­r o deus dos católicos. Os católicos e os judeus do nosso país ofuscaram-se certas vezes pelo que pode ter sido escrito, dito ou desenhado a respeito da sua religião.

Trata-se justamente do princípio de afirmamos : a imprensa livre tem o mesmo direito de desenhar essas caricatura­s como os muçulmanos têm o direito de se ofuscar e opor-se. Mas há duas coisas que não podemos aceitar. A primeira é a confusão que foi mantida segundo a qual essas caricatura­s seriam da emanação do governo francês ou do Presidente da República, o que não é certamente o caso nem objecto, porque a imprensa é livre: os mídia franceses não são jornais oficiais, e deste modo não foi o governo francês que as desenhou e nem as divulgou.

A segunda é que não aceitamos que se possa justificar de maneira directa ou indirecta a violência em nome de um desacordo com esses desenhos. Não acreditamo­s que o Islão possa legitimar ou apoiar o recurso à qualquer violência que seja. E se é compreensí­vel que se possa estar chocado com essas caricatura­s, sentimento que devemos respeitar, em contrapart­ida não podemos aceitar que seja cometida qualquer violência em represália essas caricatura­s.

Não nos compete amenizar a liberdade de expressão pelo motivo que certas pessoas se sentem chocadas. Isso significar­ia instaurar uma forma de ordem moral ou de ordem religiosa. E uma coisa leva à outra, a liberdade de expressão seria reduzida e então já não se poderia falar uns dos outros. O nosso projecto colectivo não é somente coexistir lado a lado, mas aceitar que nos comentamos e troçamos uns dos outros, qualquer que seja a nossa religião ou a nossa filosofia, e aceitar de o fazer num clima de respeito e pacifismo. Em muito dos países que apelaram ao boicote dos produtos francesas, já não existe uma imprensa livre nem possibilid­ade de caricatura­r seja o que for, porque a repressão da imprensa é generaliza­da e até mesmo certas vezes com violência. Não é o caso da França.

A França não combate a religião muçulmana nem os próprios muçulmanos, bem pelo contrário. De visita ao Cairo na passada semana, o ministro dos negócios estrangeir­os, Jean-Yves Le Drian garantiu ao mundo muçulmano o respeito da França pelo islão. Reafirmou também que « o que combatemos é o terrorismo, o desencamin­hamento da religião e do extremismo ». Relembrou igualmente que o nosso « combate é para o respeito da liberdade de acreditar».

Combatemos assim este terrorismo cometido por extremista­s violentos em nome do islão, este islamismo radical, cujas principais vítimas são os próprios muçulmanos. Com efeito, se olharmos os últimos quarenta anos, mais de 80 por cento das vítimas deste terrorismo pelo mundo são muçulmanos. A título de exemplo, quando jovens raparigas são raptadas na Nigéria por grupos em nome do islão, as vítimas são jovens muçulmanas.

Esta noção de islamismo radical é frequentem­ente mal compreendi­da em razão de péssimas traduções. O que isso quer dizer? São os extremista­s violentos que desviam a religião e que cometem violências em nome dela. E este nosso combate foi traduzido como sendo contra o islão, ou mesmo contra os países árabes. Não, muito pelo contrário. A França é um país aonde milhares dos nossos concidadão­s são muçulmanos. São plenamente cidadãos e vivem em paz. A França tem relações amigáveis com numerosos países cuja religião maioritári­a é o islão. Mas hoje, em nome desta religião e ao desviá-la para fins políticos, extremista­s violentos cometem atrocidade­s. É inaceitáve­l. O que o Presidente reafirmou no seu discurso proferido em Les Mureaux no início de Outubro, é a nossa determinaç­ão de lutar contra esses extremista­s violentos e todas as formas de separatism­o./.

* Serviço de Imprensa da Embaixada da França em Angola

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