Tortuosos caminhos da liberdade (IV)
Começo por solicitar a atenção dos técnicos da paginação do Jornal de Angola. O número do capítulo desta crónica é o que consta da epígrafe que, por erro, foi dado ao terceiro da edição passada. Posto isto e para início de conversa, passo a esclarecer as razões que levaram ao P.S. da narração anterior, onde salientei o meu agrado pelo encontro do PR com núcleos da juventude de Luanda, embora estes, segundo quem lá esteve, se apresentassem dispersos e desorganizados. Gostei dele, sobretudo pelo facto da ansiada reunião ter sido realizada a partir de um gesto vindo da Presidência da República e de ter tido a abertura e a duração que teve, uma verdadeira novidade que contrasta com os nossos brandos e parcos costumes. Gostei de ver jovens aparentemente livres, imbuídos das suas ideias e ideais, das suas esperanças, embora alicerçadas muitas delas em discursos mal concebidos e alimentados por alguma falta de preparação e de conhecimento da realidade do país – mais tarde, e no rescaldo do evento, evidenciada principalmente por jovens que escolheram o exterior para estudar ou para viver, e que têm de Angola uma visão completamente distorcida. Enfim, uma juventude (quer a da diáspora como a de dentro), onde as excepções são raras, com falta de conhecimento, pouco mais que inculta, pouco dotada de princípios que conformam a moral e a ética, mas cheia, também, para além do inegável patriotismo e de uma enorme vontade de ver o país a mudar, o que é bom, também a transbordar de recalcamentos, preconceitos, vícios e costumes que não podem deixar de ser considerados muito maus.
Hábitos e modos de estar que, sem qualquer ambiguidade na afirmação, só podem ser assacados a um regime autoritário, que teve tudo, tempo e dinheiro, inclusive, para preparar convenientemente uma juventude capaz, apta, em todos os sentidos, principalmente no de ser parceira do governo na construção da Nação feliz e dignificante para os seus filhos que todos ansiámos ao longo dos anos e que, simplesmente, até hoje, não foi possível sequer abrir caboucos sólidos. Gostei, sobretudo e por último, de pensar para mim mesmo, que se acaso persistirem e se diversificarem tais encontros, vistos na perspectiva de se ter encetado, entre nós, uma prática saudável para a educação da sociedade, teremos então a veleidade de pensar que a sociedade civil angolana, mesmo que não seja tida nem achada nas grandes decisões, esteja, pelo menos, a ser ouvida. Para ajudar na criação de uma comunidade constituída por gente formada no trabalho e que perceba o fundamental da vida. Que entenda, por exemplo, que não é o trabalhador que faz o mercado, mas sim o inverso. Que só pode haver negócio, comércio, indústria e agricultura, mercado, enfim, e verdadeira condição de cidadão, quando houver expressão através dos sindicatos e das associações que representem as pessoas, jovens e menos jovens, quando houver trabalho em todas essas e outras áreas da economia. Quando isto acontecer, fica enterrado este período bárbaro que vivemos e as soluções serão encontradas numa boa governação, que pressupõe Liberdade, Esforço e Solidariedade.
Houve, todavia, coisas de que não gostei nos meandros desse encontro. Lamento imenso ter de as denunciar publicamente. Desde logo, a sua deficiente organização, algo confusa, a proporcionar situações a que já nos habituaram os assessores e funcionários palacianos que, neste momento, já deveriam ter a obrigação de preparar melhor, eventos dessa natureza. Se me agradou a forma muito aberta e próxima que emprestou à reunião, não gostei, muito sinceramente, de ver o nosso PR a apresentar-se como grande empresário agrícola. Ao tomar posse do mais alto cargo da Nação, deveria ter-se desligado de imediato, nos moldes possíveis e previstos pela lei, das suas ligações ao empresariado. Essa exposição chocou-me, como me chocaram as explicações dadas pelo atraso das eleições autárquicas. Qualquer cidadão consciente que acompanhe com cuidado a vida da Nação angolana tem a noção clara de que a morosidade na execução e aprovação da documentação que sustenta o processo autárquico, onde incluo a Comissão Nacional Eleitoral e outras entidades, é por tudo quanto se sabe e não se pode esconder, da exclusiva responsabilidade do Parlamento, onde o partido dirigido pelo nosso PR detém maioria absoluta de assentos. Não há desculpa que, neste domínio, possa convencer os eleitores. Registo, igualmente, o meu desagrado pelo modo como a jovem que, através de uma linguagem que alguns especialistas entenderam classificar de emotiva e justa mas que, neste ponto estou perfeitamente de acordo com o PR, porque para mim, como foi para ele, a intervenção da jovem emocionada não significou mais do que a manifestação de um sentimento racista e xenófobo.
E é chegado, por via disso, o momento de se perguntar, a quem se deve o facto de estarmos a viver este momento delicado em que a estupidez que raia de manifestações vindas de todas as partes (negros, brancos e mestiços) e por imperativo de preconceitos inqualificáveis, se chegue ao cúmulo de afirmações absurdas. É, pois, chegado o momento de se perguntar com todas as letras, a quem se deve isso? Antecipo-me, respondendo eu. Claro que a culpa cabe ao partido que governa Angola há quarenta e cinco anos, o MPLA, que em determinada e decisiva fase da sua vida, deixou cair negligente ou propositadamente, palavras de ordem como “Abaixo o racismo”, “Abaixo o tribalismo”, “Abaixo o regionalismo” e outros “abaixos” mais, que tanto ajudaram na luta contra o colonialismo e deram força na conquista da Independência. Simplesmente desapareceram.
Como só gosto de falar do que sei e disso só com base na verdade, vou deixar aqui registado um pequeno (e talvez para algumas pessoas) insignificante incidente que tem a ver com o tema em questão e que anda há anos atravessado na minha garganta. Cenário, o Comité Provincial do Partido de Luanda. Ambiente, os preparativos para os festejos da última eleição do Presidente José Eduardo dos Santos, numa repetição do que já acontecera em vários momentos efervescentes do Carnaval de Luanda. Intérpretes, duas individualidades seniores, àquele nível do partido e o coordenador do Grupo de Carnaval “Os Unidos do Caxinde”. Todos eles, negros e angolanos. Em tom aceso, ouviram-se palavras ofensivas, que magoam e que excluem, mais ou menos assim proferidas pelo alto responsável partidário. “Como podes estar metido com aquele grupo de mulatos e brancos?”. Eles, os intervenientes, estão aí, ainda vivos graças a Deus. Há mais o que dizer? Claro que há e muito. Mas fica para próximas ocasiões. Hoje posicionome e fico por aqui, sem muita vontade de seguir em frente, uma vez que, por causa destes escolhos, não foi possível dar o arranque que pretendia a esta quarta etapa da minha caminhada. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.