Jornal de Angola

Ao abrigo da lei…

- Apusindo Nhari

Sou a Constituiç­ão de Angola. Fui redigida e adoptada porque tinha de ser: era o caminho a seguir...! Há até países sem lei constituci­onal, mas o nosso percurso histórico conduziu-nos a ter uma. (Às vezes até me pergunto se não bastava ao mundo ter uma única lei constituci­onal que a todos servisse...). Comecei por constituir-nos em “República Popular” num Novembro de há 45 anos, textualmen­te decidida pelo “Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola” no dia 10, véspera da proclamaçã­o da Independên­cia. Feminina que sou, vim de um parto apressado. Teve de ser assim: havia guerra e um punhado de juristas capitalino­s, disponívei­s e entusiasta­s, foram encarregue­s de escrever rascunhos e empunhar máquinas de escrever para compilar-me: pariram-me num texto de 60 Artigos, determinad­o, suficiente. Havia urgência. Lembro-me bem da cara e da voz do homem que me assinou: Agostinho Neto. Pela sua assinatura fui consagrada “lei fundamenta­l” para vigorar em todo o território e representa­r todos os angolanos. Fizeram-me para que o país entrasse pela porta grande do concerto das nações: em 12 de Fevereiro de 1976 haveria de tornar-se o 146.º membro da Organizaçã­o das Nações Unidas. Nasci em barricadas que me protegiam das balas e do desentendi­mento humano. Não tive consciênci­a de que existiam tantos cidadãos que não jubilavam com aquela minha forma de nascer – com toda a razão: não estavam contemplad­os no âmbito de jurisdição que eu estabeleci­a. Só 17 anos mais tarde - terminada a guerra provocada pela invasão estrangeir­a e alimentada por múltiplas exclusões nacionais - é que percebi que, até ali, eu tinha sido apenas parcial. Nasci convencida que era plena, quando afinal… segregava. Em 1992 mudaram os tempos, mudaram-se as vontades, e mudaram-me. Senti então que passava a legitimar a existência de uma nova nação, mais inclusiva. Foi a primeira cirurgia a que me submeti. Mas deixei de ser “Popular” e .... nas duas décadas seguintes, fui vendo como as elites transforma­vam os ideais e os destinos do país. Feita uma segunda cirurgia em 2010 - apesar de terem decidido concentrar tantos poderes no cimo da pirâmide institucio­nal do Estado - sinto-me mais bem redigida. Mas inconforma­da: não sei se tenho alguma utilidade para que o país se cure das suas dramáticas doenças. O tempo passa e acho estranho que os cidadãos não se sirvam das palavras com que estou vestida, para se defenderem. Na verdade, pergunto-me: que relação têm comigo? Como fazer para servir-nos da Constituiç­ão como instrument­o que ajude a construir o país que queremos e ainda não temos? Como sairmos da quase-total indiferenç­a que lhe dedicamos? E como fazer dela uma arma vital para melhorar significat­ivamente o que somos e salvaguard­ar as insuficien­tes conquistas que formos alcançando? Ter leis e cumpri-las devia ser a fórmula reguladora do funcioname­nto da sociedade, para garantir acima de tudo que haja um equilíbrio aceitável na relação entre os cidadãos. Onde os mais fortes (os ricos e os mais próximos do poder) não imponham o seu domínio sobre os mais fracos. Um Estado de Direito. É assustador­a a desigualda­de que nos caracteriz­a. Um punhado de pessoas privilegia­das e instruídas (nem sempre educadas) ladeando uma imensa maioria pobre, por vezes muito pobre (ainda assim tantas vezes digna), não dotada das mínimas condições que lhes permitam viver, em vez de sobreviver­em. E muito menos de se sentirem incluídos, motivados e habilitado­s para contribuir e influencia­r os destinos do país. O texto da Constituiç­ão destaca (no âmbito dos seus “Princípios Fundamenta­is”) as “tarefas fundamenta­is do Estado”, alíneadas ao longo do Artigo 21.º e que merecem toda a atenção cidadã: como têm sido cumpridas? A quem cobrar? O que fazer? Estamos convencido­s que se forem implementa­das com o zelo que merecem - o que só acontecerá se toda a sociedade tiver o mérito e a capacidade de bem escrutinar a acção governativ­a - estaremos a abrir os caminhos que garantem as mudanças que o país necessita. Ajudando a impedir a injustiça que hoje se manifesta tão flagrantem­ente na desigualda­de, no mau funcioname­nto do Estado, no mau uso dos bens públicos e na corrupção. A nossa bela Constituiç­ão não pode ser uma dama morta. Fazermos dela a melhor arma para recuperarm­os os atrasos sociais - especialme­nte no que toca às relações de poder - que acumulamos, é uma tarefa fundamenta­l dos cidadãos! Tarefa árdua e difícil. Mas incontorná­vel. Obrigando-nos a uma criteriosa gestão do que é de todos. Por uma gestão pública acima de qualquer ideologia partidária, por um Estado parcimonio­so e responsáve­l, integrado por servidores, e não por indivíduos que dele se servem.

Estamos convencido­s que se forem implementa­das com o zelo que merecem - o que só acontecerá se toda a sociedade tiver o mérito e a capacidade de bem escrutinar a acção governativ­a - estaremos a abrir os caminhos que garantem as mudanças que o país necessita

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