O Palácio de Ferro e a privatização da cultura
A inauguração da exposição “Palácio de Ferro – Memória e Processo de Restauro” alusiva ao quadragésimo quinto aniversário da proclamação da Independência Nacional e ao quadragésimo aniversário da existência da Endiama – Empresa Nacional de Diamantes de Angola – aconteceu no fim da tarde da quintafeira passada, num formato de soirée privée, com a curadoria de Arleth Leandro, fortes medidas restritivas de prevenção a Covid-19 e na presença de Jomo Fortunato, Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente, Jânio Correia Victor, Secretário de Estado para os Recursos Minerais e de Nganga Júnior, Presidente do Conselho de Administraçao da Endiama.
Teria sido, apenas, a vernissage impecável de uma exposição documental sobre o Palácio de Ferro, resultado do trabalho da equipa dirigida pela curadora e constituída por Nuno Gonçalves (Design museográfico e layout), Victor Gama (Banda sonora), Edson Chagas (Edição fotográfica), Paulo Azevedo (Captação de imagem e som, tratamento técnico da fotografia e video), Rogério Inácio e Atanagildo Recruta (Apoio à pesquisa), Boost (Branding e Impressão), com textos de Otto Greger e Cornélio Caley. Mas, o que assistimos foi muito mais do que isso.
Para começar, de modo estratégico e inteligente, apoiandose no Palácio de Ferro, a Endiama reposiciona a sua intervenção, simultaneamente, no empresariado e no mecenato cultural. Apesar do sítio ter o seu passado e o seu passivo, quem o gere considera que, desde já, “se antecipa em 2021 um novo ciclo de memórias na vida deste monumento histórico, património nacional”, num “programa de curadoria participativa da Endiama, ao abrigo da sua responsabilidade social, onde pretende activar várias competências artístico-culturais para experimentar os possíveis formatos de um “acervo vivo” pouco convencional”, como podemos ler na nota introdutória do folheto da exposição.
Se isso fosse pouco, - coisa que evidentemente não é -, é bom que saibam que, naquela quinta-feira, a brisa que viria refrescar o dia quente e pesado demorou em circular pelos jardins, com novos retoques paisagísticos, daquele edifício raro da arquitectura em Angola. Talvez, por isso, ninguém estava nada a espera que a inauguração de uma exposição fosse, também, a oportunidade escolhida para que Jomo Fortunato, Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente fizesse à imprensa - e depois o repetisse durante o discurso de abertura - o anúncio do programa “Somos Cultura, Somos Angola” e fizesse aquela que é, talvez, a sua primeira grande declaração de princípios, desde que tomou posse:
“Vocês sabem que eu sou pela privatização da cultura ou, se quisermos, pela desestatização da cultura” – disse o Ministro, logo a entrada da exposição “Palácio de Ferro – Memória e Processo de Restauro”.
Sobre o programa “Somos Cultura, Somos Angola” seguramente teremos notícias no princípio do próximo ano, mas, no que especificamente àquela declaração se refere, Jomo Fortunato, o Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente eleva o nível de debate e coloca o assento numa das portas de saída possível para a gestão dos produtos e equipamentos artísticos e culturais, no nosso país, estimulando nos limites ainda por definir a participação empresarial no ramo.
A possibilidade de “experimentar” no Palácio de Ferro um modelo de gestão empresarial das artes e da cultura, susceptível de ser replicado algures pelo país é, a priori, uma opção estimulante, complexa, mas factível apesar dela, de um modo geral, obrigar ao Estado a colocar sobre a mesa uma série de questionamentos, que interessam jugular, a saber:
Que áreas, serviços e ou domínios das instituições artísticas e culturais podem negociados em parceria, cedidos completamente ou deixados à iniciativa privada e quais, mesmo podendo ser, não devem ser privatizados pelo seu valor, papel ou carácter estratégico? Até que ponto, pode a privatização da gestão das instituições artísticas e culturais levar à despartidarização das artes e da cultura, recolocando-as numa estratégia de desenvolvimento integral e sustentável e quais as suas consequências a longo prazo? Como, com quem, com que recursos e com qual legislação seria possível acelerar a implicação do empresariado público e privado na gestão e desenvolvimento da arte e da cultura, e, Angola?
A conversa reiniciada com a inauguração de uma nova gestão do Palácio de Ferro e as declarações do Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente é do tipo que mais nos vale abordar com realismo e pragmatismo, de uma vez por todas, para que a gestão moderna, profissional e eficiente das instituições e infraestruturas artísticas seja uma prática usual entre nós, para que a fruição estética ande de mãos dadas com uma maior robustez e dinamismo da economia da cultura.