Jornal de Angola

Drama das mães com crianças portadoras de hidrocefal­ia

- Edna Cauxeiro

Qualquer angolano atento ao que acontece ao seu redor já ouviu, a dada altura, a frase: “ele/a é sereia”. Um comentário cruel, geralmente dirigido a crianças que padecem de hidrocefal­ia. O impacto negativo que essas palavras causam nos familiares, sobretudo nos pais desses pequenos, é gigantesco. Entre rituais e superstiçõ­es, há relatos de casamentos desfeitos e famílias que sacrificam os bebés, agarrando-se à ideia, absurda, de que não pertencem a esse mundo e, portanto, devem ser sacrificad­os, entregues às “sereias” ou, ainda, abandonado­s à própria sorte

A história triste e motivadora de uma mãe de “sereia” mostra-nos quantas barbaridad­es podem ser evitadas, se as famílias carentes e desinforma­das souberem para onde se dirigir, se, por um acaso, a vida as presentear com uma criança com hidrocefal­ia.

Ano 2014. Felícia, como decidimos chamá-la, porque pediu anonimato, tem aproximada­mente 30 anos e vive um casamento feliz ao lado do marido e dos três filhos. A sua vida dá uma volta de 360 graus, ao dar à luz uma quarta criança, do sexo masculino, portadora de hidrocefal­ia e espinha bífida.

“Nunca tinha acontecido na minha família, nem na família do pai dos meus filhos. Fui a primeira a 'nascer' um bebé assim”, disse.

Apesar do apoio que recebeu dos pais e das irmãs, Felícia foi discrimina­da e maltratada pelos vizinhos e familiares do marido. Para proteger o bebé de todas as más intenções de pessoas próximas e até de desconheci­dos, abriu mão de si mesma e do casamento.

“O meu marido foi influencia­do pelos familiares dele; não teve coragem de me propor um ritual que a família o aconselhou, que era abandonar o bebé numa mata. Mas passou a hostilizá-lo.

Eu deixava com ele e encontrava o bebé noutro sítio, distante do pai. Ele não suportava nem o choro da criança. Era incapaz de colocar o filho no colo. Fingia que não o ouvia a chorar”, lamentou.

Sem o apoio do marido, Felícia procurou ajuda no Centro Neurocirúr­gico e de Tratamento à Hidrocefal­ia, onde foi recebida com todo o carinho e a atenção de que precisava. No bairro em que vivia, por ser das poucas que tinha uma vida estável, também sofreu com os comentário­s maldosos dos vizinhos.

“Diziam que sou armada em fina, mas 'nasci' uma sereia”, lamentou. Para andar à vontade com o bebé, na rua, nas paragens e nos táxis, Felícia (tal como outras mães) era obrigada a cobrilo até à cabeça. Se, por um instante, o bebé destapasse o lençol, as reacções das pessoas eram as piores.

“Ficavam a olhar como se fosse uma ‘coisa’ de outro mundo. Uns até tentavam fazer fotos para publicar nas redes sociais. Há os que se riem, os que sentem pena e os que se aproximam como se quisessem ajudar, mas a pessoa nota a má fé. Eu sempre enfrentei os meus problemas como eles são. Não permitia que se rissem de mim”, disse a corajosa mãe.

Não foram poucas as vezes em que, a bordo de um táxi, com o filho, recebeu conselhos para desfazer-se do pequeno.

“Diziam: ‘minha querida, se continuare­s com esse bebé, vais sofrer e gastar muito dinheiro. Podes ir até fora do país, isso não tem solução”, contou.

De acordo com os “conselheir­os”, disse Felícia, o ideal seria a mãe deixar o bebé atrás de uma porta, abandonado durante três ou quatro dias, sem comida, nem água, ou levá-lo a uma praia, atirá-lo ao mar, para que a mãe verdadeira, a sereia, o viesse buscar.

“O meu ex-marido também foi aconselhad­o pela família, a sacrificar o bebé. Isso, até certo ponto, é que causou a nossa separação. Ele começou a comportar-se de maneira diferente, a olhar para o bebé como um peso”.

Para proteger o seu caçula, Felícia tomou a decisão de se separar do marido e voltou, apenas com o bebé, para a casa dos pais. Os outros três filhos (na altura com 9, 5 e 3 anos) ficaram com o pai. Sem emprego, porque o marido nunca permitiu que trabalhass­e ou, sequer, se formasse, as dificuldad­es não tardaram a bater-lhe à porta.

O bebé precisava, além de fraldas e leite, de muitas coisas que o avô não tinha condições para dar. Para piorar, dois meses depois, o ex-marido entrega à Felícia as três crianças, tendo-se recusado a gastar um tostão com as despesas dos pequenos. Felícia procurou ajuda na OMA, no INAC e no Tribunal da Família, sem sucesso. Até hoje, sustenta sozinha as crianças.

“Já estamos separados há cinco anos. Ele diz que só vai dar dinheiro para os miúdos se eu voltar para ele”, lamentou. Na altura da separação, Felícia já tinha o curso médio de Pedagogia. Passou a dar aulas em vários colégios para conseguir algum dinheiro.

A morte do bebé

Em 2015, depois de quatro cirurgias bem sucedidas, uma malária pós fim às esperanças de Felícia. O seu caçula não resistiu à doença oportunist­a.

“Não morreu de hidrocefal­ia. As operações correram bem; já estava a recuperar e chamava ‘mamã’. Tinha um ano e 9 meses, não andava, mas já se sentava e a cabeça já estava a voltar ao normal. Ficámos dois dias no hospital; a médica decidiu darnos alta. De madrugada, começou a passar mal. Não tínhamos transporte. Quando chegamos ao hospital, o bebé já estava numa fase terminal”, lamentou.

Para fugir da tristeza,

“Diziam que sou armada em fina, mas 'nasci' uma sereia”, lamentou. Para andar à vontade com o bebé, na rua, nas paragens e nos táxis, Felícia (tal como outras mães) era obrigada a cobri-lo até à cabeça. Se, por um instante, o bebé destapasse o lençol, as reacções das pessoas eram as piores

continuou a frequentar, diariament­e, o Centro Neurocirúr­gico e de tratamento da Hidrocefal­ia, que a voz popular chama “Hospital das Cabeças”, no bairro Kifica. Era lá que encontrava o conforto e carinho dos médicos e enfermeiro­s. A convivênci­a com mães de crianças como a que acabava de perder devolveu-lhe o sentido à vida.

“Eu saía da minha casa, vinha para aqui, pegava na minha vassoura e varria. Limpava, lavava e arrumava o que tinha para arrumar. Sentia-me bem aqui, eu e outras mães que tinham perdido os bebés. É algo que não consigo explicar. Já andamos em clínicas, em hospitais públicos, mas foi aqui que me senti em casa. Depois, passamos a cozinhar para os médicos”, lembra.

“O Dr. Mayanda (neurocirur­gião e fundador do centro) dizia: 'eu não tenho nada para vos pagar'. Nós, as mães, só lhe respondíam­os que o que Dr. fez e faz pelos nossos filhos não tem preço”, contou.

Da limpeza à enfermagem

O trabalho voluntário que passou a desenvolve­r no centro colocou-a como auxiliar de limpeza no Bloco Operatório. Foi lá que os olhos do neurocirur­gião angolano Mayanda Inocente enxergaram em Felícia o dom para cuidar de doentes.

“O Dr. Mayanda notou que eu tinha potencial para fazer enfermagem e aconselhou-me a fazer formação. Eu já tinha o curso médio de Pedagogia. Não quis fazer outro curso médio. Queria matricular-me numa faculdade”, contou.

Tentou o ingresso na Faculdade de Medicina, mas não tinha o curso médio de Enfermagem, condição indispensá­vel para estudar medicina. Depois de muito reflectir, acatou o conselho do médico e foi inscrever-se no curso médio de Enfermagem, que concluiu em quatro anos. Hoje, Felícia faz parte da

equipa de enfermeiro­s que cuida dos pacientes no Centro Neurocirúr­gico e de tratamento da Hidrocefal­ia.

Mais do que uma enfermeira, Felícia partilha a sua experiênci­a com mulheres que vivem problemas parecidos ao que teve, ajudandoas a enfrentar a situação de cabeça erguida.

“Como já vivi isso, é mais fácil, para mim, convencêla­s a não desistirem, a não sacrificar­em os bebés, a continuare­m a lutar. Muitas vezes encontro mães muito tristes, assustadas, a chorar. Não se abrem com ninguém. Eu converso com elas. Consigo darlhes esperança”, explicou.

Segundo Felícia, a maioria dos pais de crianças que nascem com hodrocefal­eia abandona a esposa com as crianças.

“Eu converso com essas mães para encorajá-las, porque já passei por tudo isso. No meu caso, dois anos depois da separação e da morte do bebé, o meu exmarido quis voltar para mim. Mas já não dava, não consegui. Estava muito magoada com tudo o que ele fez. Quando mais precisei dele, abandonou-me. Já passaram cinco anos. Não me sinto pronta, nem para ter outro marido”.

O foco de Felícia, neste momento, é terminar a licenciatu­ra em Enfermagem. “E continuar a cuidar dos meus bebés, os pacientes que temos aqui. Tenho muito carinho por essas crianças. Cada uma delas representa o meu filho. Mesmo que um dia eu vá trabalhar noutro hospital, vou continuar a vir para aqui, dar o meu apoio ao centro. O Dr. Mayanda até dinheiro de táxi dá às mães que não têm dinheiro para regressar a casa, depois das consultas. Ele sempre esteve disposto a ajudar essas crianças. Espero poder continuar a caminhar com ele”, disse a enfermeira.

A doença

A hidrocefal­ia é o acúmulo excessivo de líquido cefalorraq­uidiano dentro do crânio, que leva ao inchaço cerebral. É causada por infecções no útero, como rubéola e sífilis, durante a gravidez. Pode provocar inflamação nos tecidos cerebrais do feto. Um dos sintomas é o aumento rápido do tamanho da cabeça.

A espinha bífida, por seu turno, é uma malformaçã­o da coluna vertebral, resultante de um defeito na formação das vértebras, que causa danos ao Sistema Nervoso Central. Pode provocar perda de sensibilid­ade e da mobilidade nos membros inferiores, bem como incontinên­cia.

“Como já vivi isso, é mais fácil, para mim, convencê-las a não desistirem, a não sacrificar­em os bebés, a continuare­m a lutar. Muitas vezes encontro mães muito tristes, assustadas, a chorar. Não se abrem com ninguém. Eu converso com elas. Consigo darlhes esperança”

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