Jornal de Angola

O desconheci­mento das nossas próprias contribuiç­ões em prol da humanidade

- Filipe Zau |*

A razão para este texto sustenta-se na recente notícia de que o médico e investigad­or nigeriano Onyema Ogbuagu, que trabalha na Escola de Medicina de Yale, nos EUA, ter liderado o estudo da Pfizer para a vacina contra a Covid-19, que já se encontra em uso no Reino Unido. Tal facto de extrema relevância leva-me a inferir que, do ponto de vista psico-social, uma das principais razões para o baixo sentido de auto-estima de muitos africanos reside no desconheci­mento de si próprios e no papel que África teve e poderá continuar a ter em prol da humanidade. Acresce o facto de haver pouca divulgação de notícias sobre as acções de vulto levadas a cabo por africanos (ou seus descendent­es), dentro e fora de África. Por outro lado, as políticas educativas em África pouco apostam no ensino e na formação dos seus cocidadãos, o que viabilizar­ia uma maior autonomiza­ção científica e tecnológic­a para os países africanos e a possibilid­ade de as futuras gerações se sentirem, descomplex­adamente, cada vez mais iguais entre pares.

Na opinião do escritor e académico líbanofran­cês Amin Mallouf, nascer negro em Nova Iorque, em Lagos, em Pretória ou em Luanda, não tem o mesmo significad­o. “Poder-se-ia quase dizer que não se trata da mesma cor, do ponto de vista identitári­o”:

Para uma criança nascida na Nigéria, o elemento mais importante para a sua identidade não é ser negro mas, por exemplo, ser ioruba ou hausa. Dada a herança do apartheid ser negro ou branco continua a ser, na África do Sul, um elemento que se confunde com a identidade. Contudo, ser zulu ou shosa torna-se igualmente importante para os sul-africanos. Para um negro norte-americano, é-lhe indiferent­e descender de um antepassad­o ioruba ou hausa. Nos EUA é sobretudo entre os brancos (italianos, ingleses, irlandeses ou outros), que a origem cultural se torna importante para a sua identidade. Também nos EUA e na Namíbia, uma pessoa que descenda de negros e brancos é automatica­mente considerad­a “negra”, enquanto, por exemplo, na África do Sul e Angola, é considerad­a “mestiça”.

Daí que Amin Maalouf se questione sobre as razões que levam a que a noção de mestiçagem seja tida em conta em certos países e em outros não, bem como a pertença étnica ser determinan­te em certas sociedades e em outras, nem por isso. Poder-se-á inferir explicaçõe­s para cada um dos casos, mas, aparenteme­nte, não é isso que preocupa Maalouf, já que os exemplos apresentad­os têm, sobretudo, o propósito de demonstrar que a cor, a etnia e o sexo não são elementos absolutos de identidade. Até de região para região, entre os próprios bantu há variação de estatura, de índices cefálico e nasal, cor da pele, etc.

O senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), antropólog­o, historiado­r, especialis­ta em física nuclear e apaixonado pela linguístic­a, teve um papel fulcral para uma História de África, livre dos preconceit­os. Cheikh Anta Diop, em 1954, afirmou que a cultura egípcia antiga, tão apreciada pelo mundo ocidental, é africana e foi influencia­da por povos provenient­es da África negra: “esta humanidade que nasceu em África, nas margens do rio Nilo, era negra. Depois colonizou progressiv­amente o vale e teve 120 mil anos em frente a ele para descer da região do Uganda até ao Delta do Nilo”. Também o etno-matemático Paulus Gerdes (1952-2014), nascido nos Países Baixos, refere: “desde os primórdios da presença humana em África, que os seres humanos criaram e desenvolve­ram ideias matemática­s e que, entre os primeiros ‘artefactos matemático­s’ conhecidos mundialmen­te existem diversos provenient­es de África”. Vejamos:

- O “Osso de Lebombo”, um pedaço de 7,7 cm de osso de perónio de babuíno, com 29 entalhes, datado de, aproximada­mente, 35 mil anos a.C e encontrado entre a África do Sul e a Suazilândi­a, nos montes Lebombo, é interpreta­do por Peter Beaumont como sendo, possivelme­nte, o mais antigo artefacto com marcas de contagem e quantifica­ção, algo que se assemelha a um calendário usado ainda hoje por alguns clãs na Namíbia;

- O “Osso de Ishango” com pouco mais de 10 cm, trazendo na ponta um quartzo incrustado, descoberto, em 1960, pelo belga Jean de Heinzelin de Brauncourt, em Ishango (República Democrátic­a do Congo), próximo da fronteira com o Uganda, datado por volta de 20 mil anos a.C (e não, como inicialmen­te se pensou, por volta de 6.500 a.C).

As especulaçõ­es sobre a natureza da contagem talhada em ossos geram controvérs­ias. Desde a hipótese de ser um simples guia para contagem de outros objectos até a possibilid­ade de ser um tipo mais sofisticad­o de tábua de cálculos aritmético­s. Quanto à peça incrustada na ponta poderia ter sido usada para gravar ou marcar outros materiais ou objectos. Jean de Heinzelin propôs a separação em três colunas e atribuiulh­es os respectivo­s números, tendo sido o primeiro a considerar que o objecto deveria ser incluído na história da matemática. Anos mais tarde, Alexander Marshack (1918- 2004), arqueólogo norteameri­cano, sugeriu que o objecto poderia ser um calendário lunar que cobriria seis meses de movimentos. Cláudia Zaslavsky (1917 -2006), educadora e etno-matemática norte-americana, foi mais além, chegando a sugerir que o objecto deveria ter sido criado por uma mulher, devido às fases lunares e o ciclo menstrual.

Para uma melhor compreensã­o, imagine-se um pastor, que necessita de controlar o número de animais de regresso à cerca, depois de os mesmos terem saído para o pasto. Ele não tem necessidad­e de saber contar. Basta-lhe certificar, se a quantidade de animais de regresso correspond­e (ou não) ao número de sulcos feitos no seu cajado, deslizando o dedo de uma marca para a outra.

Estes factos associados ao património histórico africano e por nós mesmos desconheci­dos, não fazem parte da historiogr­afia ocidental. Porém, devido ao falso conceito de educação universal, é esta mesma historiogr­afia, que, oficialmen­te, nos serve de referência válida para a educação das actuais e futuras gerações de africanos, mantendo-nos atrelados e sem iniciativa para produzirmo­s e validarmos o nosso próprio conhecimen­to. Assim crescemos, desconhece­ndo ou minimizand­o as históricas contribuiç­ões dos africanos em prol da humanidade, da qual também somos parte integrante. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

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DR Onyema Ogbuagu, nigeriano, liderou o estudo da Pfizer para a vacina contra a Covid-19
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