O desconhecimento das nossas próprias contribuições em prol da humanidade
A razão para este texto sustenta-se na recente notícia de que o médico e investigador nigeriano Onyema Ogbuagu, que trabalha na Escola de Medicina de Yale, nos EUA, ter liderado o estudo da Pfizer para a vacina contra a Covid-19, que já se encontra em uso no Reino Unido. Tal facto de extrema relevância leva-me a inferir que, do ponto de vista psico-social, uma das principais razões para o baixo sentido de auto-estima de muitos africanos reside no desconhecimento de si próprios e no papel que África teve e poderá continuar a ter em prol da humanidade. Acresce o facto de haver pouca divulgação de notícias sobre as acções de vulto levadas a cabo por africanos (ou seus descendentes), dentro e fora de África. Por outro lado, as políticas educativas em África pouco apostam no ensino e na formação dos seus cocidadãos, o que viabilizaria uma maior autonomização científica e tecnológica para os países africanos e a possibilidade de as futuras gerações se sentirem, descomplexadamente, cada vez mais iguais entre pares.
Na opinião do escritor e académico líbanofrancês Amin Mallouf, nascer negro em Nova Iorque, em Lagos, em Pretória ou em Luanda, não tem o mesmo significado. “Poder-se-ia quase dizer que não se trata da mesma cor, do ponto de vista identitário”:
Para uma criança nascida na Nigéria, o elemento mais importante para a sua identidade não é ser negro mas, por exemplo, ser ioruba ou hausa. Dada a herança do apartheid ser negro ou branco continua a ser, na África do Sul, um elemento que se confunde com a identidade. Contudo, ser zulu ou shosa torna-se igualmente importante para os sul-africanos. Para um negro norte-americano, é-lhe indiferente descender de um antepassado ioruba ou hausa. Nos EUA é sobretudo entre os brancos (italianos, ingleses, irlandeses ou outros), que a origem cultural se torna importante para a sua identidade. Também nos EUA e na Namíbia, uma pessoa que descenda de negros e brancos é automaticamente considerada “negra”, enquanto, por exemplo, na África do Sul e Angola, é considerada “mestiça”.
Daí que Amin Maalouf se questione sobre as razões que levam a que a noção de mestiçagem seja tida em conta em certos países e em outros não, bem como a pertença étnica ser determinante em certas sociedades e em outras, nem por isso. Poder-se-á inferir explicações para cada um dos casos, mas, aparentemente, não é isso que preocupa Maalouf, já que os exemplos apresentados têm, sobretudo, o propósito de demonstrar que a cor, a etnia e o sexo não são elementos absolutos de identidade. Até de região para região, entre os próprios bantu há variação de estatura, de índices cefálico e nasal, cor da pele, etc.
O senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), antropólogo, historiador, especialista em física nuclear e apaixonado pela linguística, teve um papel fulcral para uma História de África, livre dos preconceitos. Cheikh Anta Diop, em 1954, afirmou que a cultura egípcia antiga, tão apreciada pelo mundo ocidental, é africana e foi influenciada por povos provenientes da África negra: “esta humanidade que nasceu em África, nas margens do rio Nilo, era negra. Depois colonizou progressivamente o vale e teve 120 mil anos em frente a ele para descer da região do Uganda até ao Delta do Nilo”. Também o etno-matemático Paulus Gerdes (1952-2014), nascido nos Países Baixos, refere: “desde os primórdios da presença humana em África, que os seres humanos criaram e desenvolveram ideias matemáticas e que, entre os primeiros ‘artefactos matemáticos’ conhecidos mundialmente existem diversos provenientes de África”. Vejamos:
- O “Osso de Lebombo”, um pedaço de 7,7 cm de osso de perónio de babuíno, com 29 entalhes, datado de, aproximadamente, 35 mil anos a.C e encontrado entre a África do Sul e a Suazilândia, nos montes Lebombo, é interpretado por Peter Beaumont como sendo, possivelmente, o mais antigo artefacto com marcas de contagem e quantificação, algo que se assemelha a um calendário usado ainda hoje por alguns clãs na Namíbia;
- O “Osso de Ishango” com pouco mais de 10 cm, trazendo na ponta um quartzo incrustado, descoberto, em 1960, pelo belga Jean de Heinzelin de Brauncourt, em Ishango (República Democrática do Congo), próximo da fronteira com o Uganda, datado por volta de 20 mil anos a.C (e não, como inicialmente se pensou, por volta de 6.500 a.C).
As especulações sobre a natureza da contagem talhada em ossos geram controvérsias. Desde a hipótese de ser um simples guia para contagem de outros objectos até a possibilidade de ser um tipo mais sofisticado de tábua de cálculos aritméticos. Quanto à peça incrustada na ponta poderia ter sido usada para gravar ou marcar outros materiais ou objectos. Jean de Heinzelin propôs a separação em três colunas e atribuiulhes os respectivos números, tendo sido o primeiro a considerar que o objecto deveria ser incluído na história da matemática. Anos mais tarde, Alexander Marshack (1918- 2004), arqueólogo norteamericano, sugeriu que o objecto poderia ser um calendário lunar que cobriria seis meses de movimentos. Cláudia Zaslavsky (1917 -2006), educadora e etno-matemática norte-americana, foi mais além, chegando a sugerir que o objecto deveria ter sido criado por uma mulher, devido às fases lunares e o ciclo menstrual.
Para uma melhor compreensão, imagine-se um pastor, que necessita de controlar o número de animais de regresso à cerca, depois de os mesmos terem saído para o pasto. Ele não tem necessidade de saber contar. Basta-lhe certificar, se a quantidade de animais de regresso corresponde (ou não) ao número de sulcos feitos no seu cajado, deslizando o dedo de uma marca para a outra.
Estes factos associados ao património histórico africano e por nós mesmos desconhecidos, não fazem parte da historiografia ocidental. Porém, devido ao falso conceito de educação universal, é esta mesma historiografia, que, oficialmente, nos serve de referência válida para a educação das actuais e futuras gerações de africanos, mantendo-nos atrelados e sem iniciativa para produzirmos e validarmos o nosso próprio conhecimento. Assim crescemos, desconhecendo ou minimizando as históricas contribuições dos africanos em prol da humanidade, da qual também somos parte integrante. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais