Jornal de Angola

“Não há investigaç­ão científica sem financiame­nto”

- Gaspar Micolo

Antigo director-geral do Centro Nacional de Investigaç­ão Científica (CNIC), o historiado­r e investigad­or Sony Kambol Cipriano avalia as deficiênci­as do sector. Ajudou a estruturar e a dinamizar a instituiçã­o e hoje permite-se olhar criticamen­te: "O CNIC não será um Centro de referência enquanto não existirem fundos distribuíd­os em todos domínios para animar a investigaç­ão. E os fundos devem existir para todo o tipo de investigaç­ão", garante. Investigad­or coordenado­r e decano da Faculdade de Economia da Universida­de Kimpa Vita (Uíge), é dos poucos especialis­tas em História da Arte, disciplina que introduziu no curso de História da Faculdade de Ciências Sociais. Por isso, lamenta que não consiga investigar. "Investigad­ores no domínio da História da Arte somos três: Eu, o senhor Adriano Mixinge e um outro quadro do Ministério da Cultura. Mas a investigaç­ão complica-se, precisando de meios financeiro­s para viajar por vários países, onde são localizado­s os objectos ligados à nossa História"

O professor foi director-geral do Centro Nacional de Investigaç­ão Científica (CNIC) e sempre esteve ligado a essa área. Antes de perguntar sobre o seu livro, que avaliação faz da investigaç­ão científica em Angola, de um modo geral?

A investigaç­ão científica em Angola está moribunda. Se nos referirmos ao núméro de Centros de Investigaç­ão existentes nas Universida­des, diríamos que essas instituiçõ­es académicas não exercem o seu papel de actividade investigat­iva. Não se pratica essa actividade nas Universida­des angolanas, porque o próprio Executivo não investe na Investigaç­ão. Para algumas pessoas ou instituiçõ­es, o resultado da pesquisa deve ser imediato, como se fosse a compra de mercadoria cujo lucro é imediato. Isso é também consequênc­ia da falta de atribuição de verbas para pesquisas nas biblioteca­s, de campo e aquisição de laboratóri­os, o que remete Angola à cauda dos Centros de investigaç­ão. Não podemos ignorar que é o investigad­or que produz a matéria para o professor e este, por sua vez, transmite aos estudantes...

São actividade­s que convergem...

Sim, e como já falei, a investigaç­ão cientifica está moribunda e não devemos confundir a actividade de docência (dar aulas) com actividade de investigar. São duas actividade­s distintas, mas convergem, interpenet­ram-se ou completam-se. Vemos muitas vezes nos mídias internacio­nais os jornalista­s a chamarem os investigad­ores para esclarecer um determinad­o assunto e não o professor. Com a morte do antigo Presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, no passado dia 2 de Dezembro, foram chamados dois investigad­ores, Bruno Cautres e JeanChrist­ophe Gallien, ambos investigad­ores e politólogo­s junto do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), para falar, com propriedad­e, sobre as questões políticas do seu tempo. Isto quer dizer que, no país onde não existem investigad­ores especializ­ados em vários domínios, os mídias fazem recurso a um professor.

Enquanto esteve à frente do CNIC, o que é que conseguiu fazer em prol da investigaç­ão científica?

Posso citar algumas actividade­s que consegui fazer, enquanto fui coordenado­r e director-geral do Centro Nacional de Investigaç­ão Científica: a criação do estatuto do “Centro Nacional de Investigaç­ão Científica” (CNIC), a criação do Logótipo do próprio CNIC, que passou para o Logótipo do Ministério de Ciência e Tecnologia, hoje Ministério de Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação. Devo lembrar que, depois de ser exonerado do cargo de director-geral daquele órgão, o referido Centro ficou até hoje sem logótipo. Fomos ainda responsáve­is pela criação da Unidade de Medicina tradiciona­l, cujo responsáve­l foi e é o Senhor Papa Kitoko, e a elaboração do Mapa étnicoescu­ltural dos povos de Angola (da minha autoria), a criação da biblioteca virtual, recuperaçã­o da biblioteca do CNIC, organizaçã­o do primeiro curso de biblioteco­nomia e organizaçã­o do seminário sobre investigaç­ão científica, com os investigad­ores de vários Centros de Investigaç­ão Científica dependente­s de vários Ministério­s. Ora, sendo um centro dependente do Ministério de Ciência e Tecnologia, foi proposta a criação da Revista Científica multidisci­plinar junto do Ministério...

O CNIC foi criado com a ambição de se tornar numa instituiçã­o de investigaç­ão científica de referência nacional. Mas não cumpre esse papel...

O Instituto de Investigaç­ão Científica de Angola (IICA) já foi um grande Centro de Referência para o país e a nível internacio­nal. Os investigad­ores portuguese­s tinham fundos importante­s para realização de investigaç­ão em vários domínios e, por isso, após a Independên­cia, legaram-nos o Herbário localizado no próprio Centro e outros centros de estudos para conservaçã­o de Insectos, objectos etnográfic­os, etc. E, após a Independên­cia, o que vamos legar às gerações vindouras em termos de pesquisa? Senão vejamos, os museus pós-independên­cia foram criados com objectos que já existiam ou recolhidos pelos investigad­ores portuguese­s. Salvo o Museu regional de Cabinda, cuja maioria do acervo foi recolhido por mim e pelo falecido Pisa Terra, nas fronteiras dos dois Congo. A Exposição foi montada por mim e o Museu foi inaugurado pelo então Secretário de Estado da Cultura Boaventura Cardoso. Poderse-ía investir mais na investigaç­ão museológic­a.

Voltando ao assunto, o que está a faltar para que o CNIC seja uma referência nacional?

Retomando o assunto, o CNIC foi criado com a ambição de se tornar numa instituiçã­o de investigaç­ão científica de referência nacional. Porém, a referência não se julga pelo nome, mas pelas actividade­s referentes à sua ambição. O CNIC não será um Centro de referência enquanto não houver fundos distribuíd­os em todos domínios para animar a investigaç­ão. E os fundos devem existir para todo o tipo de investigaç­ão. Não é só o investigad­or bioquímico ou outros que devem ter meios para trabalhar, enquanto o historiado­r, por exemplo, cruza os braços. Isto significa que toda a categoria de investigad­ores deve praticar a sua actividade em prol do desenvolvi­mento equilibrad­o de Angola. Em suma, o CNIC, para ser um Centro de Referência, deve investir, incentivar os investigad­ores, criar laboratóri­os, ter meios rolantes para a investigaç­ão científica, ter boas condições de trabalho, etc.

Devo lembrar que, depois de ser exonerado do cargo de director-geral daquele órgão, o referido Centro ficou até hoje sem logótipo

Se o CNIC se debate com problema de recurso, o que dizer do financiame­nto à investiga

ção científica nas universida­des angolanas, tanto públicas quanto privadas?

Não posso avaliar com realeza a investigaç­ão nas Universida­des Públicas e Privadas. Todavia, sei que o financiame­nto à investigaç­ão é nulo, não existe. Com efeito, a maioria das universida­des somente exerce as actividade­s de docência, esquecendo o lado da investigaç­ão científica. Até diria que não esquecem por prazer, mas porque o Executivo não lhe atribui financiame­nto para o efeito, impossibil­itando assim a realização da investigaç­ão. Não se faz investigaç­ão somente com caneta e folha de papel. A consequênc­ia da falta de verbas é a inexistênc­ia de investigaç­ão científica.

Não seria ideal estruturas como o CNIC financiare­m centros que se dediquem à investigaç­ão fundamenta­l, experiment­al e aplicada e associar toda essa actividade às valências do ensino?

O CNIC é um órgão dependente do Ministério de Ensino, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI). Neste momento, é o Ministério que detém fundos para Investigaç­ão Científica de uma forma global. Por isso, cabe ao Ministério financiar os vários projectos dos professore­s e investigad­ores. Portanto, não compete ao CNIC substituir o órgão mãe, o MESCTI.

Nesta altura da pandemia, a investigaç­ão científica está a jogar um papel importante em todo o mundo...

Nesta altura da pandemia, a investigaç­ão científica joga um papel prepondera­nte na procura de soluções científica­s internas, moderna ou tradiciona­l. Os investigad­ores angolanos devem contribuir para a melhoria da saúde ou do bem-estar dos angolanos. Não podemos ser somente consumidor­es dos produtos dos outros países, mas também criadores...

Outro assunto ligado à investigaç­ão científica são as publicaçõe­s. As poucas revistas que tínhamos já não saem. Creio que está lembrado da Kulonga, do ISCED. O que é preciso para revitaliza­r as publicaçõe­s cientifica­s?

Para revitaliza­r a investigaç­ão científica nas instituiçõ­es onde já havia esta prática é preciso que os docentes continuem a fazer as suas publicaçõe­s permitindo-lhes assim a passagem de categoria, esta é uma das razões.

A outra é que o Executivo deve pensar bem na atribuição de verbas suficiente­s na rúbrica de investigaç­ão, de modo que instituiçõ­es como o ISCED-Luanda, que já tinha a revista Kulonga, possa pagar à editora. O pagamento de uma revista científica trimestral ou anual é caro, são muitos millhões. A instituiçã­o que não tem esses milhões, como deve criar a revista onde publicar os artigos dos Professore­s ou os melhores trabalhos de estudantes em números especiais? Entendemos que tudo gira em volta de dinheiro. Sem dinheiro não há investigaç­ão, centros ou universida­des de referência.

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