Ou será perseguição?
A “teoria da perseguição”, usada pelas mentes que defendem acusados de assalto ao erário, é um argumento tão baixo, que chega a atiçar um sentimento de revolta de quem sofre, de alguma forma, as consequências dos excessos cometidos durante grande período da República anterior. Fica fácil, a essas pessoas, que nunca sentiram a prepotência de quem se via poderoso demais para ser travado nos gestos de desrespeito a instituições e a seres humanos, fazer a advocacia do intolerável.
Os abusos de quem se sentia com poder e influência suficientes para os cometer, sem avaliar consequências, não incidiram apenas sobre bens públicos. Dos infortúnios da nossa curta História de País independente, não rezam só danos materiais ou financeiros de grande monta ou “banquetes” opulentos. Constam, igualmente, ofensas contra pessoas, sobre a honra de pais de família, de gente honesta, que teve de se vergar a humilhantes situações, porque maiores que o orgulho e a verticalidade eram os receios de sevícias, no caso de contestarem situações que consideravam injustas, inconcebíveis ou intolerantes.
Os males que agora vêm à memória representam, também, pequenos crimes contra a dignidade e o respeito que merece cada ser humano. São delitos de honra, que invadiram a consciência de pessoas que se viram violadas na razão que lhes assistia, mas que acabaram derrotadas pelo vício, pelo compadrio que então imperava. Felizmente, é um tempo que vai ficando para trás.
O Jornal de Angola viveu um episódio que comprova bem a dimensão (em quantidade e profundidade) dos abusos que pessoas e instituições foram forçadas a consentir, por temor ou respeito ao poder que então emanava de determinadas figuras, algumas delas hoje com a imagem conspurcada por actos lesivos ao país:
Há alguns anos, um jornalista do Jornal de Angola envolveu-se num acidente de trânsito. Ao volante da outra viatura, ía um jovem e, ao lado, a irmã, a proprietária. Desde cedo, a empresa assumiu a responsabilidade pela ocorrência, prontificando-se a pagar as despesas de reparação do Hyundai branco, modelo Terracan, de fabrico não sulcoreano. O Jornal de Angola contactou a representante da marca, que fez a apreciação dos danos. A dona do veículo negou, entretanto, que se fizesse o serviço. Alegou ter contratado um engenheiro, que, depois de uma avaliação, concluiu ser preferível uma nova, dada a gravidade dos danos na viatura, que tinha apenas 500 quilómetros. A “lesada” rejeitou, igualmente, um carro de substituição que lhe foi cedido (iniciativa da pessoa directamente envolvida no acidente).
À empresa começaram, entretanto, a chegar telefonemas. As chamadas vinham de altos responsáveis de instituições do Estado, de ministérios, a orientar que se procedesse segundo a vontade dos “lesados”. A direcção do Jornal de Angola foi ter a uma concessionária de automóveis, que vendia a mesma marca, porém de fabrico sul-coreano, a 23 mil dólares. Contactados para verem a viatura no stand, a senhora, o irmão e outros familiares, entretanto, envolvidos no processo, negaram-se a fazê-lo, simplesmente. O quadro sofreu alteração radical. Eles exigiam um Hyundai, modelo Santa-Fé. Incrível. Já não queriam um carro igual ao que lhes pertencia, um Terracan, branco, oferecido por uma instituição do Estado, onde, por sinal, trabalhava um irmão. A situação não fazia sentido algum, mas era uma exigência chancelada por quem mandava e lhes dava suporte. Como se a pressão sobre os “culpados” fosse pouca, chegaram a recorrer aos serviços de uma advogada, de nacionalidade brasileira, e a encaminhar o jornalista à antiga DNIC - foi aberto um processo-crime -, em pelo menos duas ocasiões. Ela, a “lesada”, gabava-se dos “encostos” que tinha no poder, particularmente de uma tia.
O Hyundai Santa-Fé ficava ao preço de 35 mil dólares, mais 12 mil que o Terracan de produção sul-coreana e muito mais ainda do que estava o veículo envolvido no acidente. Mas o Jornal de Angola foi obrigado a comprá-lo assim mesmo e entregou-o à “lesada”. Uma viatura cor de vinho. Novinha. O carro com que, se calhar, ela sempre sonhou, mas não tinha como o obter, senão por via de um truque revelador de oportunismo grosseiro, de indisfarçável chantagem e ameaças por via do tráfico de influência. E ainda exigiu o pagamento de 100 mil Kwanzas (na altura valiam mil dólares, hoje mais de 800 mil Kwanzas), pelo parqueamento do Terracan sinistrado, numa conhecida estação de serviço, no Alvalade, na altura pertença de um parente. E foram embora felizes, “lesada” e familiares. Mas não para sempre, obviamente.
A curiosidade leva à pergunta: ainda conservam, “lesada” e familiares, o Hyundai que conseguiram à custa da falta de carácter ou já “arrancaram” outro, à força, no âmbito de novos exercícios de chantagem e ameaças? O Jornal de Angola acabou prejudicado em alguns milhares de dólares. Mas não é o mais grave. Faz deitar lágrimas, ainda hoje, pensar que era assim que o País se construía: com abusos de poder, cometidos por pessoas já na altura economicamente resolvidas, mas que não perdiam a oportunidade de lesar o Estado até nos detalhes mais ínfimos, desde que descortinassem a oportunidade.
“Lesada”efamiliarestransformaramaocorrêncianotrânsitonumevento que os deixou coloridos de alegria, ao invés de os fazer corar de vergonha. Aberrações dessas sequer entram nas contas gerais, quando se inventariam os males que levaram Angola à situação que agora vive, moral, social e economicamente. Eventos assim fazem despertar o sentimento de revolta, sobretudo quando vozes ousam defender delapidadores do erário.
E se o Jornal de Angola quiser fazer deste evento um caso? Será “perseguição”, como dirão os defensores da teoria. Para estes, ocorrências assim sequer deviam ser lembradas. Mas é preciso trazê-las à luz; torná-las conhecidas, como forma de desencorajar tentações. Para o caso, há documentos adormecidos nos arquivos, a comprová-los, como também estão aí os “lesados”. Eles e quem lhes patrocinou actos desonestos; quem lhes amparou tão hedionda atitude. Eles talvez se esqueçam do que fizeram naquele ano. Acontece. Os algozes têm memória curta. Mas quem sofre sevícias, morais ou físicas, conserva o sofrimento; trálo sempre bem presente, sobretudo na alma.
Portanto, fica o alerta para quem insiste em comportamentos arrogantes, prepotentes,oportunistas,comoaindasevêhoje,emboraemmenorescala.É preciso lembrar que os tempos são outros: da vantagem da denúncia e do benefício da Justiça. Por isso, correm processos em tribunais. Há crimes que não prescrevem. Pelo menos na nossa memória. E ainda bem.