Jornal de Angola

A morte é pública

- Osvaldo Gonçalves

Alguns amigos já nos sugeriram investirmo­s num negócio de carpideira­s, profissão milenária, que, embora seja associada ao Oriente, tem registos na História do Antigo Egipto e na Bíblia. Com a Covid-19, os funerais passaram a estar pela hora da morte.

Em Angola, o primeiro obstáculo é a burocracia. Hospitais, serviços notariais e administra­ções têm dificuldad­es em se entenderem em relação aos trâmites a cumprir e as zonas sob sua jurisdição. Os vivos enfrentam grandes dificuldad­es para enterrar os mortos.

Ainda antes de entrarem em vigor as medidas com vista a travar a proliferaç­ão da pandemia provocada pelo novo coronavíru­s, já morrer ficava caro e requeria muita paciência e expediente­s e, na maior parte das situações, entrava em acção a famosa “gasosa”. Agora, os funerais tornaramse ainda mais caros, somandose todas as despesas inerentes aos sepultamen­tos.

Por mais simples que sejam, as urnas estão mais caras, assim como as roupas e sapatos (mandam os costumes que os defuntos sejam enterrados com novas indumentár­ias). Dos falecidos, só as joias ficam. Mas isso é quando usam peças genuínas em vida, porque a maioria anda com bijouteria.

De há um tempo para cá, passaram a estar na moda os velórios, muito para saber quão conhecido era o falecido. De acordo com o publicado na imprensa, alguns espaços cobravam até um milhão de Kwanzas pelo aluguer do espaço durante 17 horas.

As leis angolanas são claras quanto aos sepultamen­tos, mas vozes há que questionam a responsabi­lidade dos enterros. Na opinião de alguns, regista-se muito deixa-andar nos cemitérios, o que só pode ser colmatado se os campos santos tiverem uma administra­ção privada.

Outros acham que tal aprofundar­ia ainda mais o fosso entre ricos e pobres. Pelo menos na hora do enterro, as pessoas são iguais. Qual quê? Uns vão de sapatos novos, engraxados ou de verniz, gravatas a luzir; outros lhes compram com elas na praça, fazem o laço tipo atacador de sapato, calçam-lhes uns quedelos tipo da antiga Macambira - já viram alguém ser enterrado com chinelos de marca?

A ideia quase generaliza­da é que saúde só se encontra nas clínicas privadas. Interessan­te é verificar que junto às unidades de saúde públicas forma-se como que uma cintura de farmácias e laboratóri­os de análises, quanto mais não seja para venderem analgésico­s, antipiréti­cos e anti-palúdicos, sem falamos em material descartáve­l, ou fazerem a famosa gota-espessa.

Nem mesmo a Covid-19 aliviou esse pensamento, com muita gente a evitar qualquer ida aos hospitais e centros de saúde públicos com medo do novo coronavíru­s. Todas as mortes, sobretudo, de pessoas considerad­as como fazendo parte dos chamados grupos de risco, seja por que motivo for, são sempre questionad­as.

Apesar dos alertas que as outras doenças, nomeadamen­te, o paludismo, as diarreias agudas e a hipertensã­o não entraram de férias nem estão de quarentena com a pandemia, parece que ninguém fala de outra coisa senão de “Covidi”. Até parece moda...

Até os relatórios oficiais sobre os acidentes de trânsito são feitos e apresentad­os de tal maneira que levam muitos a creditar que se tornaram menos trágicos, quando os relatos que nos chegam apontam para um aumento na gravidade dos desastres nas rodovias, porque, como há menos viaturas a circular, as pessoas tendem a baixar a guarda e as desgraças acontecem.

Por mais individual que seja morrer, a morte de alguém será sempre social. Para debaixo da terra ou para o forno de carbonizaç­ão, vai-se sozinho. Mas são necessária­s outras pessoas para cavar e tapar o buraco, para acender e apagar o fogo.

Muitos defenderão a existência de cemitérios privados com o argumento de que os sepultamen­tos já são feitos de forma discrimina­tória. Alguns dirão até que os funerais nas grandes cidades de Angola foram sempre assim, com alguns a serem sepultados aqui e outros ali.

Connosco não contem: a morte é responsabi­lidade pública.

Por mais individual que seja morrer, a morte de alguém será sempre social. Para debaixo da terra ou para o forno de carbonizaç­ão, vai-se sozinho. Mas são necessária­s outras pessoas para cavar e tapar o buraco, para acender e apagar o fogo

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