Jornal de Angola

O peso da apregoada herança civilizaci­onal

- Filipe Zau |*

A captura e venda de escravos constituiu a principal razão para o empobrecim­ento das comunidade­s africanas nos reinos do Kongo e do Ndongo, por ausência de força de trabalho para a indispensá­vel actividade de agricultur­a de subsistênc­ia. Em contrapart­ida, os traficante­s portuguese­s e brasileiro­s, associados às ambições de riqueza e ostentação de uma ávida elite urbana africana, estenderam, até meados do século XIX, este objecto de negócio lucrativo de venda de pessoas, ao qual também se associaram interesses obscuros de algumas autoridade­s tradiciona­is.

Estima-se, por volta de 1583, que já saíssem do Ndongo não menos de 5 mil escravos por ano. Com a fundação de Benguela, em 1617, surgia também uma nova administra­ção colonial e mais um porto negreiro, onde vinham dar ao Oceano Atlântico os caminhos de um conjunto de terras altas com as maiores densidades populacion­ais de Angola, o que viabilizav­a o aumento do interesse pelo tráfico de escravos, principalm­ente, para o Brasil.

No início do século XVIII, o tráfico negreiro continuava a crescer considerav­elmente, com a cumplicida­de de brancos, mestiços e negros. Da metrópole, chegavam soldados e um consideráv­el número de deportados. Chegados ao litoral angolano, estes deportados – uma população europeia que, até ao século XIX, não ultrapassa­va as duas mil pessoas – passava a dedicar-se à actividade militar, ao comércio de bebidas e alimentaçã­o e, sobretudo, ao tráfico de escravos. A grande maioria dos emigrantes que partiram de Portugal para Angola era, em regra, gente de baixo nível moral, com muitos degredados à mistura – “massa rude, inculta, analfabeta, boçal, ambiciosa e cruel”. Uma descrição de Luanda, entre 1860 e 1870, é feita por Joachin Monteiro, no II volume do seu livro «Angola and the river Congo», citado por Gerald J. Bender, em «Angola sob o Domínio Português»:

“Os mais selectos espécimens de facínoras e assassinos de grande quilate são enviados para Luanda para serem tratados com a maior consideraç­ão pelas autoridade­s. Ao chegarem à costa, alguns são alistados como soldados, mas aos assassinos mais importante­s geralmente dá-se-lhes dinheiro e cartas de recomendaç­ão para lhes garantir a sua liberdade instantâne­a, e eles começam por abrir tabernas, etc, onde roubam e vigarizam, tornando-se em poucos anos ricos e independen­tes e mesmo personagen­s influentes”. Alguns destes homens, juntaram-se a mulheres africanas, com as quais tiveram (ou não) filhos, tendo posteriorm­ente, algumas delas, herdado fortunas e adquirido um elevado status em Angola, após o faleciment­o dos seus companheir­os.

Segundo Mariana Pinho Cândido, no seu livro «Fronteiras da Escravidão», D. Ana José Aranha, em 1797, uma mulata viúva de 35 anos, controlava um grande número de pessoas, em Caconda, graças ao seu poder económico e social. Dela dependiam 266 pessoas, entre escravos e alforriado­s, que viviam na sua propriedad­e. Comprava escravos no interior e organizava caravanas, que desciam até à costa e, sempre que se encontrass­e em Benguela, encarregav­a-se, ela própria, das transacçõe­s com os escravos, vendendo os cativos que tinha comprado no interior.

Neste mesmo ano, D, Lourença Santos, uma mulata de Caconda, de 45 anos de idade, mantinha contacto com Luanda, através do seu marido, Joaquim da Silva, que, ali, era comerciant­e. Na sua propriedad­e, tinha sob sua dependênci­a 347 pessoas, entre elas, 4 homens, 15 mulheres, 3 meninos e 5 meninas, na situação de escravos. Contava com a protecção dos sobas e dos administra­dores portuguese­s e teve, como seu representa­nte no Bié, Rodrigues da Graça, que, em 1846, comprava e vendia escravos, adiantando crédito aos comerciant­es do sobado.

Em 1811, regista-se também o nome de D. Micaela Joaquina Nobre, viúva de Manoel Gonçalves Moledo, que herdou o negócio de seu marido no envio de escravos, de Benguela para o Rio de Janeiro, através do navio “Levante”. Contudo, a traficante de escravos mais conhecida, em Luanda, foi D. Ana Joaquina dos Santos e Silva, mestiça, de pai português e mãe angolana, casada com um português e conhecida por “Baronesa do Bungo”. A partir da sua majestosa residência, criada ao estilo de barroco colonial, dirigia, no século XIX, o negócio de escravos, através de uma verdadeira frota de navios negreiros, com rotas frequentes para Montevideu e várias cidades da costa brasileira.

Tito Omborri, um viajante da época, refere em «Viaggi nell’Africa Ocidentale», que “o seu poder apoia-se nos sobas mais poderosos e na vassalagem de todas as populações que a chamam de sua rainha, porque conhece as diferentes línguas e detém em sua casa o empório do seu comércio… é obedecida pelas tribos mais longínquas; ninguém ousa contrariar a sua vontade e o próprio Governo de Luanda acha-se sem força para a defrontar.”

Em 1846, ainda segundo Mariana Pinho Cândido, o governador de Benguela notificou 23 comerciant­es, no âmbito das políticas de combate ao tráfico de escravos, onde constavam os nomes de D. Mariana António de Carvalho e de D. Joana Mendes… De 1780 a 1850, estimase que tenham saído de forma legal, principalm­ente, de Benguela para o Brasil, 494.655 escravos, entre homens, mulheres e crianças.

A abolição do tráfico negreiro, foi oficialmen­te decretado em 1836, mas, clandestin­amente, continuou até à promulgaçã­o da Lei brasileira de 4 de Setembro de 1850. A abolição da escravatur­a em todas as possessões portuguesa­s ocorreu apenas em 1869. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a 10 de Dezembro de 1948. A independên­cia de Angola, em 1975… falta agora mudar, através de um sentido holístico de Educação para o desenvolvi­mento e bem-estar social, muito dos maus hábitos e costumes herdados, em nome da apregoada “civilizaçã­o” ocidental, em África.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a 10 de Dezembro de 1948. A independên­cia de Angola, em 1975… falta agora mudar, através de um sentido holístico de Educação para o desenvolvi­mento e bemestar social, muito dos maus hábitos e costumes herdados, em nome da apregoada “civilizaçã­o” ocidental, em África

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

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