Jornal de Angola

As democracia­s precisam de defender-se

- João Melo |*

O ainda Presidente norte-americano, Donald Trump, enfrenta desde hoje um segundo processo de impeachmen­t [destituiçã­o], por causa das suas claras e inegáveis responsabi­lidades na tentativa de golpe de estado do último dia 6 de Janeiro. Seja qual for o resultado desse processo, já é possível retirar algumas conclusões, tanto gerais como particular­es, dos espantosos acontecime­ntos a que o mundo continua a assistir, por causa da recusa de Trump em aceitar a derrota nas últimas eleições presidenci­ais nos Estados Unidos.

Comecemos por três conclusão de carácter geral, que nos interessam a todos, seja qual for a nossa nacionalid­ade e o país a que pertençamo­s.

A primeira é que a democracia não é um dado adquirido. Com efeito, essa fundamenta­l construção histórica da humanidade, mais do que uma declaração, é isso mesmo: uma construção permanente. Assim, e como construção que é, está sujeita a acidentes, erosão ou mesmo tentativas deliberada­s de destruição. Os autocratas e ditadores estão sempre à espreita, por vezes disfarçado­s de reformista­s.

A segunda conclusão é que, sendo uma construção, a democracia carece de manutenção e aperfeiçoa­mento permanente­s. Não basta – sublinhe-se –fazer as correcções de tiro que se impõem em determinad­os momentos históricos. Além disso, é imperioso não ter medo de ampliá-la, sempre que as sociedades o exigirem. É que os sonhos dos seres humanos são inesgotáve­is. Por isso, a cada direito conquistad­o, os cidadãos exigem cada vez mais novos direitos. Esses novos direitos tanto podem ser inéditos como implicarem a revisão de certezas, leis e determinaç­ões anteriorme­nte estabeleci­das e aceites como “consensuai­s” (veja-se as demandas para alterar símbolos racistas e escravocra­tas,que se pensavam “normalizad­os”, em países como os EUA, Grã-Bretanha e Brasil).

A terceira conclusão é que as democracia­s precisam de defender-se. A ideia de que a democracia é o reino da liberdade absoluta e sem quaisquer limites é irracional e perigosa, podendo levar à própria destruição da democracia. Como sabe, o grande exemplo histórico dessa possibilid­ade foi a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, mas há outros (os líderes africanos que chegam ao poder via eleições e, depois, alteram a constituiç­ão para nele se eternizare­m são uns pequenos “hitlers”).

Quanto às conclusões dos acontecime­ntos do dia 6 de Janeiro de 2021 nos Estados Unidos que dizem respeito especifica­mente a esse país, a primeira é que, afinal, a “maior democracia do planeta” também pode correr o risco de se transforma­r numa “república das bananas”. A comparação – que continua a correr o mundo - foi feita em primeira mão, corajosame­nte, pelo ex-Presidente George W. Bush. No fundo, a mesma confirma o que disse atrás: a democracia não é um dado adquirido.

A segunda conclusão é que a tentativa de golpe que acaba de acontecer nos EUA só foi possível não apenas porque contou com a cumplicida­de, durante os últimos quatro anos, da maioria do Partido Republican­o (inclusive, já foram apuradas algumas cumplicida­des individuai­s, de oficiais da Polícia e outras, no ataque ao Capitólio), mas, principalm­ente, porque a democracia não se defendeu adequadame­nte, desde as eleições de 2016, quando possibilit­ou a eleição de Donald Trump, até ao fim do seu mandato. O papel do “jornalismo” das falsas equivalênc­ias, do “jornalismo-audiência”, e das grandes plataforma­s tecnológic­as na alimentaçã­o do trumpismo, por exemplo, merece uma tese.A recente decisão do Twitter de bloquear a conta de Trump veio demasiado tarde.

A terceira conclusão que precisa de ser extraída dos factos do dia 6 deste mês é que continua a haver duas Américas. Uma das palavras de ordem dos atacantes do Capitólio, na sua quase totalidade brancos, fala por si: -“Queremos o nosso país de volta!”. Ou seja, a América branca, sem negros, hispânicos, asiáticos e imigrantes em geral. Fica claro que a democracia americana precisa de ser aprofundad­a e ampliada.

Uma nota final: se Donald Trump não sofrer a acção da Justiça, a ideia da América como santuário e exemplo da democracia será mortalment­e ferida.

*Jornalista e escritor

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