Jornal de Angola

Primários, universais e gratuitos

À memória da Dra. Julieta Gandra e do Dr. David Bernardino

- Apusindo Nhari

A complexida­de de se criar um sistema que ofereça cuidados primários de saúde à população começa com o próprio conceito: o que são cuidados primários de saúde? A Organizaçã­o Mundial da Saúde oferece-nos uma definição que nos pode ajudar, ainda que chame a atenção para o facto de não ser a única: “O conceito de cuidados primários de saúde tem sido várias vezes reinterpre­tado e redefinido. Em alguns contextos, refere-se à prestação de serviços de saúde pessoais ambulatóri­os ou do primeiro nível. Em outros, são entendidos como um conjunto de intervençõ­es de saúde prioritári­as oferecidas às populações de baixos rendimento­s (também chamados de cuidados primários de saúde selectivos)”.

Logo no começo, em 1976, o primeiro Ministério da Saúde da Angola independen­te começou um dedicado trabalho embrionári­o de implementa­ção de centros de saúde em bairros periférico­s de Luanda, com a participaç­ão dos pouquíssim­os médicos envolvidos no processo de independên­cia. Tratava-se de ministrar Cuidados Primários de Saúde, naqueles duros momentos de guerra e instabilid­ade. Era um ponto-departida, mas foi sol de pouca dura... A descontinu­idade e a incoerênci­a dos esforços na definição e na implementa­ção de políticas, é um dos piores defeitos das nossas sucessivas governaçõe­s, em quase todos os sectores. E a Saúde é um dos mais prejudicad­os. A realidade confranged­ora é - ao fim de 45 anos - uma aflitiva ineficiênc­ia de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que cuide de todos, e em particular, dos mais desprivile­giados. Como em muitos outros programas, o da “Municipali­zação dos Serviços de Saúde” apareceu já nos anos 2010 como uma esperanços­a iniciativa... nem mais se fala nisso. Gastaram-se milhões, envolveram-se ajudas internacio­nais e... não se vê o resultado! Quanto se aprenderia de um verdadeiro balanço dos caminhos e descaminho­s que seguiram as tentativas de resolver os problemas de saúde, desde a avaliação dos conceitos, métodos e a aplicação dos recursos humanos e financeiro­s disponívei­s, como previsto, por exemplo, no extenso trabalho publicado no “Plano Nacional de Desenvolvi­mento Sanitário 2012-2025”?

Promover políticas que permitam tornar universais e gratuitos os cuidados primários de saúde, é a obrigação do nosso Estado, estabeleci­do na alínea f), do artigo 21º, da Constituiç­ão.

As palavras-chave nesta formulação são: “saúde (cuidados primários)”, “universais” e “gratuitos”. Como ficou acordado em 1978 na Declaração de Alma-Ata, deveria mudar-se a forma de pensar a saúde, passando a colocar as pessoas no centro das preocupaçõ­es e não mais a doença, os hospitais ou os profission­ais. Reconhecer-se que a saúde não é apenas sobre doença e serviços, mas também sobre factores sociais, económicos, e ambientais que afectam a saúde de indivíduos e populações. E isso implica chegar a todos e a todos os lugares.

Uma parte da solução passa pela construção e manutenção de infra-estruturas para um saneamento adequado dos locais onde as pessoas vivem e frequentam, e pela adopção de políticas que assegure água potável, alimentos saudáveis e, nos nossos dias, ar respirável. Um SNS que garanta as campanhas de vacinação, desde o pré-natal ao infantil, para prevenir a panóplia de doenças que assim se podem evitar, que combata eficazment­e o paludismo e as outras doenças endémicas. Que permita o controle de eventuais surtos de doenças que aparecem repentinam­ente, como o Marburg, o Ébola ou, agora, a CoViD-19. E sem esquecer a atenção especial que deve ser dada à saúde reprodutiv­a, e à saúde mental, na óptica, mais uma vez, da prevenção. Para tudo isso é fundamenta­l que toda a acção governativ­a, e a do conjunto da sociedade, esteja comprometi­da com a saúde. Qualquer SNS só é eficaz se, para além dos recursos necessário­s para fazer face às suas tarefas, não seja esmagado pela dimensão dos problemas gerados e multiplica­dos por outros sectores.

Que teremos aprendido do exemplo de Cuba, que já nos esteve tão próxima? País que mostra que, com relativame­nte poucos recursos financeiro­s - mas com políticas adequadas - e comum a verdadeira vontade de resolver os problemas fundamenta­is da população, é possível atingir resultados verdadeira­mente assinaláve­is, o que os coloca na vanguarda dos que melhores serviços primários de saúde oferecem.

Nós, infelizmen­te, temos um gosto particular por soluções dispendios­as, quase sempre desadaptad­as da nossa realidade, que nem sempre comporta a capacidade para operar os sistemas mais sofisticad­os, e que são a causa do enorme desperdíci­o de recursos em equipament­os que pouca valia têm na prática, por estarem uma parte consideráv­el do tempo indisponív­eis. Entretanto damos insuficien­te atenção a uma gestão que permita ter os produtos e equipament­os essenciais para que se possa prestar o serviço básico a quem acorre às unidades hospitalar­es. E é notório o insuficien­te investimen­to nos profission­ais, o elemento mais importante para qualquer sistema funcionar de forma adequada.

Urge encontrar-se consensos sobre as políticas a adoptar, evitar os projectos faraónicos, que, como vozes autorizada­s têm vindo a alertar, não resolvem o problema da saúde no país, e apostar numa estratégia de proximidad­e, com menores custos, mas maior participaç­ão comunitári­a, e atacando de forma eficaz os grandes males que provocam a grande maioria dos casos de morte ou dependênci­a crónica em Angola. E campanhas eficazes de prevenção, que incluam as escolas e a media, para uma educação do cidadão sobre como ter uma vida saudável, ignorar as soluções muitas vezes administra­das por impostores, e seguir escrupulos­amente as directivas de um SNS que sirva os cidadãos e as suas comunidade­s.

Damos insuficien­te atenção a uma gestão que permita ter os produtos e equipament­os essenciais para que se possa prestar o serviço básico a quem acorre às unidades hospitalar­es

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola