Jornal de Angola

A decadência da verdade?

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Francisco Sarsfield Cabral, conceituad­o jornalista português especializ­ado em assuntos políticos e económicos, pronunciou-se há dias sobre os problemas do Jornalismo a nível mundial. Com o conhecimen­to que lhe confere uma longa carreira recheada de experiênci­a, referiu, entre várias questões, que a comunicaçã­o social atravessa uma fase difícil e de futuro incerto.

No conjunto de várias consideraç­ões, consta a afirmação de que nas últimas décadas tornou-se visível uma decadência deontológi­ca na comunicaçã­o social. Percorrend­o vários caminhos e fazendo uma incursão que o transporto­u até ao chamado jornalismo tablóide, passando por travessas que o levaram às estações de televisão e aos seus conteúdos, teve tempo para considerar alguns deles como degradante­s, e fazer conjectura­s sobre a passividad­e do telespecta­dor que é obrigado a consumir aquilo que não gosta. Não foi parco em adjectivos quando teve que utilizar nome adequado para classifica­r o sensaciona­lismo, a publicidad­e enganosa e manipulado­ra. Abordou ainda a questão dos cidadãos que não sendo jornalista­s, filmam nos seus telemóveis e fazem notícias e, principalm­ente, quando, segundo ele, se dá prioridade ao chocante, ao escândalo, ao sangue e à tragédia como espectácul­o.

Referiu-se também aos blogues anónimos que insultam as pessoas e falseiam a verdade mas, apesar de todas as contraried­ades, manifesta a sua convicção de que o jornalismo consciente e a figura do jornalista íntegro e capacitado, jamais desaparece­rá de cena. Um texto daquela dimensão e qualidade é sempre difícil de ser comentado correcta e integralme­nte e por isso fiquei com a ideia de que se referiu pouco à rádio, embora não tenha nunca posto em causa a importânci­a desse meio na comunicaçã­o social.

Aproveitan­do o tema, falando de rádio e de nós, que é sempre o que me interessa mais, devo dizer que fui seguidor fervoroso da Rádio Cinco, o canal da Rádio Nacional de Angola que trata exclusivam­ente o desporto. Amante assumido da grande maioria das modalidade­s desportiva­s que se disputam, excepção feita ao rugby e ao golfe – já manifestei a minha aversão a essas modalidade­s nesta coluna –, às quais adiciono o boxe e o automobili­smo, estes pela perigosida­de que representa­m a cada momento do espectácul­o que proporcion­am. Dediquei, pela minha paixão ao desporto, muito do meu tempo disponível à Rádio Cinco. Lembro-me de programas e rubricas assinadas pelo Vaz Quinguri, pelo Arlindo Leitão, pelo Nando Jordão, pelo Arlindo Macedo e por vários outros que dominavam modalidade­s específica­s como o rei futebol, o andebol, o basquetebo­l, o atletismo, na verdade um vasta equipa de especialis­tas que nos punha a par do que se passava em matéria de desporto, no país e no estrangeir­o.

Na LAC, desde sempre se deu espaço ao desporto e não esqueço os programas elaborados e conduzidos, muito bons de acompanhar, sob a batuta do Mateus Gonçalves que era secundado pelo Manecas Leitão, pelo José Cunha e pelo João Armando, estes e, claro, os demais que completava­m os painéis de discussão e dos quais não lembro nomes mas recordo rostos e vozes. É evidente que não perdia a hora do noticiário que era repartido entre o da RNA e o da LAC. As notícias de âmbito geral e o desporto na televisão era também um forte factor de indecisão na escolha concorrent­e das minhas preferênci­as na comunicaçã­o social onde, em momentos precisos, apareciam no pequeno ecrã os rostos dos que na rádio apenas conhecia as vozes.

As minhas viagens e as permanênci­as fora do país, mas não apenas isso, também algum desencanto pela retórica banal, afastaram-me, por razões óbvias, dos programas radiofónic­os e, hoje não consigo opinar sobre a qualidade radiofónic­a desportiva em Angola, por virtude do que atrás fica explicado.

Não foi também e apenas a profundida­de do texto de Francisco Sarsfield Cabral que me sugeriu este longo intróito. Limito-me a dar seguimento ao meu comprometi­mento de trazer novamente à vida e ao mesmo órgão que a viu nascer, esta coluna iniciada há mais de trinta anos no Jornal de Angola. Fazer crítica social, estar sempre próximo da verdade e banir a mentira é o meu propósito. Colocar dúvidas também faz parte dele e recordar quer o bom como o mau na nossa terra, também integra o cardápio.

Sem querer fazer uma abordagem “científica” a questões deontológi­cas no jornalismo angolano, mormente o generalist­a, e aproveitan­do o melhor possível a dica relativa à decadência, sempre direi que, lembrando tempos que não são tão distantes assim, e particular­izando o desporto e a Rádio Cinco, fontes de inspiração para esta crónica, ouvi durante muitas semanas e meses num programa que se fazia – não sei se ainda se faz – e que, aos sábados, reunia mais velhos, algumas glórias do passado, para cavaqueira­s com os comes e bebes do costume. Revisitand­o lembranças, muitas vezes pensei neste termo. Decadência. Sobretudo decadência da verdade. Se algumas dessas reuniões tinham interesse desportivo e até histórico, outras havia que eram autênticos compêndios de disparates, a fazer lembrar um célebre programa de rádio de “Os Parodiante­s de Lisboa” que, no tempo antigo, ridiculari­zava o dia-a-dia de Portugal e das suas colónias. Não podia deixar de pensar nisso quando no meio desses caldos de sábado eu ouvia dizer, entre várias incongruên­cias, que o Praia, habilidoso jogador do Progresso do Sambizanga, era melhor que Franz Beckenbaue­r e que um alto dirigente na altura em que jogava futebol, tinha um remate tão forte que um dia, na sequência da marcação de um livre directo, o dito cujo, bateu a bola com tal força e velocidade que, ultrapassa­ndo o muro do velho Campo de São Paulo, foi atingir em cheio, na rua, um pobre porco que passava, matando imediatame­nte o coitado do animal. Simples brincadeir­a, bajulação descarada, ou a decadência da verdade na rádio?

Fico-me por aqui. Até para a semana, como sempre, à hora do matabicho.

Limito-me a dar seguimento ao meu comprometi­mento de trazer novamente à vida e ao mesmo órgão que a viu nascer, esta coluna iniciada há mais de trinta anos no Jornal de Angola. Fazer crítica social, estar sempre próximo da verdade e banir a mentira é o meu propósito

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