Jornal de Angola

O pacato cidadão

- Osvaldo Gonçalves

O grupo reunia-se sempre ali aos fins de tarde a conversar sobre política e futebol, enquanto bebia umas cervejas importadas (estavam mais baratas que as nacionais). O facto de estarem assim todos em conjunto permitia-lhes “mandar vir” várias rodadas. Umas atrás das outras, as latas vinham e o líquido era consumido com a falsa sensação de, ao fim de cada jornada, terem gasto pouco dinheiro. Afinal, só tinham pago uma “rodada”!... A cantina do Mamadou era a referência, “através” da luz e do pequeno televisor colocado lá dentro, protegido por uma armação metálica, sempre ligado a um canal que só “fala” em francês. Ninguém entendia patavina, mas pouco importava. Sempre era melhor do que assistir a um filme chinês ou indiano, com artistas e bandidos todos envolvidos numa dança sincroniza­da. Por uma questão religiosa, a cerveja vinha da caixa térmica de mais uma “empreended­ora”, refugiada do fisco na luta diária pelo ganhapão. Também podiam saborear uma magoga, um cabrité ou um makayabu, quentinhos e sempre prontos a sair. Quem assim os visse diria tratarem-se de “pacatos cidadãos”, como agora dizem os políticos e os comentador­es quando se querem referir ao povo, à “raia miúda”, que paga os impostos e lhes sustenta a vida folgada que levam. O facto de ser um grupo multifacet­ado permitia aos comparsas fazerem piadas sobre muitas coisas que aconteciam no Mundo, até porque tudo isto se passou antes da pandemia causada pelo novo coronavíru­s. Com a actual situação, cresceu a polémica ao redor do Mundo. Primeiro, quando se tratava apenas de uma doença, muitos aproveitar­am para deitar cá para fora todos os feles que lhes iam na alma, seja por razões de índole política, seja por pura simples xenofobia. A partir do momento que os países começaram a mostrar diferenças na capacidade de executar planos de vacinação contra a pandemia num sentido global, quando se tornou ainda mais claro o fosso existente no Mundo entre ricos e pobres, entre fracos e poderosos, seja extra fronteiras, seja dentro delas, registaram-se mudanças radicais nos discursos tanto dos políticos como dos aspirantes a tal e até de governante­s. No dicionário dessa gente passaram a figurar termos como “turismo de vacina” e “vacina de camarote”, mesmo se sabendo que, com as restrições de viagens por causa da Covid-19, o continente africano vai perder, só no sector do Turismo, milhões de empregos e de dinheiro daí provenient­e. A cada dia que passa, aumentam os números de pessoas infectadas e de mortos em decorrênci­a da pandemia, mas, como já se esperava, esta revela-se uma luta entre gigantes em que apanhar uma molha independe de se andar à chuva. Por toda a parte, novas expressões são repetidas várias vezes, sem os seus actores se preocupare­m que, dessa forma, podem estar a criar supostos factos históricos e a influencia­r numa filosofia da linguagem a ser estudada no porvir. Em Angola, entraram para a História termos como “camarada”, “irmão ou “maninho”, conotados com os três movimentos de libertação, depois tornados partidos, usados até hoje para classifica­r alguém segundo a cor política que se lhe pretenda dar num determinad­o momento ou até num contexto mais abrangente. O ambiente político no País permanece infestado de termos, velhos ou mais recentes, que funcionam como etiquetas para indicar fulano ou beltrano. Se antes todos eram “camaradas” na linguagem oficial, outras designaçõe­s foram surgindo ao longo do tempo. O empresário passou a “agente económico”, o candonguei­ro a “empreended­or”, o “camarada ladrão” a “marimbondo” e por aí em diante. Mas, como sempre, quando as ondas batem nas rochas, quem se lixa é o mexilhão. Daí surgir agora o “pacato cidadão”, aquele que, qual abelha obreira, sustenta toda a colmeia.

O empresário passou a “agente económico”, o candonguei­ro a “empreended­or”, o “camarada ladrão” a “marimbondo” e por aí em diante. Mas, como sempre, quando as ondas batem nas rochas, quem se lixa é o mexilhão. Daí surgir agora o “pacato cidadão”, aquele que, qual abelha obreira, sustenta toda a colmeia

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