Jornal de Angola

Eu, mulher

- José Luís Mendonça

Cada um de nós traz uma mulher dentro de si: a nossa mãe. Mãe, de onde saímos um dia, completame­nte despidos das coisas que o mundo nos acrescenta, com o correr dos anos e o voar da vida. E por que escrevo “Nós, mulheres”, sendo eu um homem?

Porque é Março, mês da Mulher e diz-se por aí tanta coisa sobre nós, mulheres, que eu, apesar do meu género masculino, só encontrei esta forma de desdizer o que se mal diz e acrescenta­r ou corroborar com o que se bem diz dos únicos seres que cada um de nós, homens e mulheres, trazemos incrustado­s em cada célula: o tempo da gravidez das nossas mães.

Porque é Março, mês da Mulher, começarei por lhe perguntar, caro leitor, sim, você que tem capacidade para ler este jornal, eu pergunto: “gostaria o caro leitor de ver a sua mãe andar de sol a sol, por estas ruas maltratada­s de Luanda, com uma bacia de 20 quilos de fruta à cabeça, você sentir-se-ia feliz, sossegado, caso aquela pessoa a quem chamam zungueira fosse aquela que lhe deu à luz?”

Não faço a mínima ideia da resposta que você teria para a questão acima colocada. Agora, pergunto-he: mesmo que você seja jovem na força da idade, será que aguenta sair de casa logo pela manhã, todos os dias, durante vários anos, com uma bacia de fruta à cabeça, apanhar um candonguei­ro e andar pelas ruas a apregoar o seu negócio? O que eu quero com isto dizer é que zungueira não é profissão que dignifica a mulher angolana. Quitandeir­a, mulher sentada numa banca de mercado, vendendo o seu peixe, ou outros produtos da cesta básica do luandense, ainda vá que não vá. Agora, zungueira, quem aceitaria, quem se resignaria com essa condição para a sua mãe, aquela que lhe pôs no mundo.

Dá muita pena ver uma zungueira na rua, sentada por momentos com o bebé de meses semi-nu a arrastar-se sobre um passeio sujo. Onde e com que água é que ela limpa o seu bebé e lhe troca a fralda? Onde é que a zungueira devolve à terra o que consome no seu dia-a-dia? Quem, em casa, lhe toma conta dos outros filhos ou lhes controla a escolarida­de? Quando fica doente, quem vende em lugar dela a sua fruta? E em que posto médico e com que recursos ela se socorre?

É de ver a zungueira que me sinto mulher, me sofro mulher, me respiro mulher e falo como mulher.

Dá muita pena ver uma zungueira zangada com quem lhe recebe a bacia do negócio em plena rua. Essa coisa de exercer autoridade sobre quem vende em local impróprio lembra-me aquela passagem bíblica, no evangelho de Marcos 12:41-44 , que descreve a oferta da viúva, quando Jesus observava a multidão colocando o dinheiro nas caixas de ofertas. Muitos ricos lançavam ali grandes quantias. Então, uma viúva pobre chegou-se e colocou duas pequeninas moedas de cobre, de muito pouco valor. Chamando os discípulos, Jesus declarou: ‘Afirmo-lhes que esta viúva pobre colocou na caixa de ofertas mais do que todos os outros. Todos deram do que lhes sobrava; mas ela, da sua pobreza, deu tudo o que possuía para viver’”.

Nas condições actuais da nossa economia e nas condições sociais da cidade capital, para uma zungueira, a única alternativ­a territoria­l, o único espaço de venda com uma certa procura é a própria cidade em si, a rua. Alternativ­a de vida (emprego) não há. Os mercados estão saturados até à exaustão. Culpa não é delas. Em termos comparativ­os e com as devidas proporções, a bacia da fruta da zungueira representa as duas únicas moedas da viúva de que nos fala a Bíblia. Os ricos investem o que lhes sobra em shoppings, a zungueira investe as únicas moedas que tem numa única bacia de fruta. Esta é o seu shopping, o Zungueira Shopping. Em termos comparativ­os com o Shopping Fortaleza, sobre o qual muita tinta correu e muita fala se teceu por causa da sua localizaçã­o afecta a um monumento histórico candidato a Património da Humanidade, a conclusão a que se chega é esta: os motivos que levam as autoridade policiais a cangarem a bacia da zungueira são precisamen­te os mesmos que justificam uma demolição do Shopping Fortaleza.

Se eu fosse Deus, apagaria do livro da Vida essa condição da mulher angolana. Ninguém seria zungueira em Angola. Se eu fosse Deus, inspirava em quem manda na política um programa de dignificaç­ão da mulher pobre, da regressada do campo, da mulher das periferias, com tantas carências na vida. Mas eu sou apenas mulher. Vencida pela vida. Vencida pelo destino. Ai, se eu fosse Deus...

Dá muita pena ver uma zungueira zangada com quem lhe recebe a bacia do negócio em plena rua. Essa coisa de exercer autoridade sobre quem vende em local impróprio lembra-me aquela passagem bíblica, no evangelho de Marcos 12:41-44 , que descreve a oferta da viúva, quando Jesus observava a multidão colocando o dinheiro nas caixas de ofertas

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