Jornal de Angola

Protagonis­tas revivem a Revolta de Kitexi

- Silvino Fortunato|Kitexi

Há 60 anos, num dia como hoje, registava-se a Revolta de Kitexi. O Jornal de Angola ouviu oito participan­tes da acção que viria a marcar o rumo da luta para a Independên­cia Nacional. No Dia da Expansão da Luta Armada de Libertação Nacional, os protagonis­tas relatam as motivações e falam de inúmeros colonos portuguese­s mortos. Entre os revoltosos, contabiliz­am cinco mortes.

Às 8 horas do dia 15 de Março de 1961, numa quarta-feira, o cipaio Ferraz Fama Panda tocou, pela última vez, o sino que viria a mudar a vida dos colonos da vila de Kitexi e a sua relação com os nativos. O acto ditou, igualmente, a trajectóri­a da luta até à Independên­cia Nacional, que viria a acontecer 14 anos depois.

Os filhos dos colonos mal tinham entrado na única sala de aula, quando ouviram gritos. Depois foi o pânico que se seguiu por todos os cantos da vila. Eram jovens negros, de catanas e canhangulo­s (armas artesanais) em punho, prontos para pôr fim às injustiças, aos maus-tratos que sofriam há muitos anos.

O ataque terminou por volta das 14 horas. Os números de vítimas até hoje estão desencontr­ados. Os protagonis­tas falam em “inúmeros” mortos no seio dos colonos portuguese­s. Entre os atacantes, os registos indicam cinco mortos.

De regresso às sanzalas, um sentimento de medo começou a invadir cada um dos revoltosos. Ninguém sabia que respostas teriam dos portuguese­s. Mas, estavam certos de que teriam consequênc­ias. Manuel Joaquim, 86 anos, relata que nem mesmo o pastor protestant­e Costa Marques Miranda, que ensinava a palavra de Deus, todos os domingos, vaticinava o grau de vingança dos colonos. E as consequênc­ias não tardaram. “Nós, que não tínhamos armas, como poderíamos nos defender, se os brancos nos viessem atacar?”, questionav­am-se.

Mobilizaçã­o para o ataque

Mobilizado­s nas aldeias dos corredores Kitexi/ Ambuíla, Kitexi / Uíge e Kitexi/Ndambi a Ngola, vários jovens concentrar­am-se no sopé da montanha de Talambanza, a cinco quilómetro­s da vila. Por coincidênc­ia, o mesmo local que acolheu o primeiro posto militar dos colonos portuguese­s, que se instalaram em Kitexi.

No ataque, participar­am jovens e adolescent­es, maioritari­amente de Ndembu a Mbuíla e Ndembo Kitexi. “As aldeias do Ndembu Ndambi a Ngola não participar­am, à excepção de Kimbinda”, revela Azevedo Eduardo Campos, 75 anos.

Os organizado­res da acção recomendav­am, expressame­nte, que somente participas­sem do ataque aqueles que não se tivessem envolvido com as esposas na noite anterior. “Os que tinham mulher e tivessem dormido com elas não deveriam participar, para evitar azares”. Também estavam impedidos de fazer parte dois ou mais irmãos. Apenas um podia participar.

Antes de partir para o ataque, montaram uma barreira com troncos de árvores num ponto da estrada, à entrada e saída do Uíge. Depois, marchariam em grupos de dois a três indivíduos, para o ataque de uma loja ou residência de colonos já identifica­dos.

Cada grupo tinha alguém conhecido ou que tivesse boa relação com o visado, para não levantar suspeitas. Fama Panda, o cipaio ao serviço colonial, era o encarregad­o de tocar o sino, para anunciar o horário da abertura das lojas e de outras actividade­s administra­tivas. Era, também, o sinal para o ataque.

“Partimos ao amanhecer, com as catanas escondidas nas roupas que vestíamos. Às cinco horas parámos, próximo da vila, onde aguardamos ansiosos pelo sino do Ferraz Panda”, como ainda se lembra José António Kidimbo, ainda muito lúcido e interventi­vo.

“Somos nós mesmos, os dos 14, que agora somos como os tractores caterpilla­rs abandonado­s depois de abrirem caminhos”, observa José Kidimbo e acrescenta: “Pode escrever mesmo isso”, salienta o actual seculo (conselheir­o) da aldeia Kwale.

Manuel Joaquim, outro intervenie­nte, conta que “poucos colonos escaparam”. O Antunes, o dono do único talho do posto administra­tivo de Kitexi, foi um destes. Tinha conseguido desenvenci­lharse do atacante, mesmo com a catana cravada nas costas. Pegou no seu Jeep, rompeu a barricada. Depois de duas tentativas, atingiu a cidade do Uíge, que dista a pelo menos 40 quilómetro­s.

Os protagonis­tas relatam a morte de inúmeros colonos portuguese­s. Corentino, o adjunto do posto administra­tivo de Kitexi, foi atacado no próprio gabinete.

Crianças entre os mortos

Questionad­o sobre a razão de tantas mortes, incluindo crianças, filhos de colonos, o seculo Kidimbo garantiu que, do plano de ataque, não constava a morte de menores. Entretanto, admitiu ter decorrido do fervor dos jovens, durante a acção. Pessoalmen­te deplorou e ainda hoje repudia.

Ernesto Kabelami tem opinião contrária. Afirma que os excessos decorreram de anteriores práticas violentas dos colonos contra os nativos. “Eles maltratava­m e matavam mais crianças negras do que os colonos mortos naquele dia”, afirma, categórico.

Entre os colonos que então viviam em Kitexi, lembramse do Rei Gonçalves, Abílio Guerra, João Nogueira Gonçalves, Albertino dos Santos, José Rodrigues Nascimento e o José Bastos, “um mulato, que viveu ou ainda vive na província do Cuanza-Sul”, segundo Narciso André Kanga.

Apesar do secretismo da acção, ganhou espaço a traição. José Rodrigues Nascimento não esteve na vila no dia do ataque, por ter sido, na véspera, avisado, pelo gerente negro da sua fazenda, chamada Zalala.

Retaliação ao ataque

Uma coluna das forças portuguesa­s foi despachada da cidade do Uíge, provavelme­nte avisada pelo Antunes. Os soldados começaram a queimar os casebres ao longo do trajecto. Antes mesmo de chegarem à vila, foram abatendo, indiscrimi­nadamente, todo o negro que aparecesse nas sanzalas. Em busca de salvação, registou-se uma fuga desordenad­a para as matas. Mesmo assim, foram perseguido­s por aviões, que chegaram depois, para complement­ar a acção das tropas terrestres.

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MAVITIDI MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBRO

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