Jornal de Angola

Heróis modernos

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No dia 2 de Fevereiro de 1995, assinava neste Jornal e nesta mesma coluna, uma crónica à qual dei o título de “Os heróis e os outros”. Falei então dos verdadeiro­s heróis e dos outros que pretendiam a designação. Referi o facto de terem passado vinte anos sobre a data da independên­cia nacional e que, apesar das duas décadas dobradas naquela altura, pouco ou nada de palpável se registava no país, em termos de desenvolvi­mento. Abordei nessa peça o heroísmo dos que, desde o início, lutaram de armas nas mãos e tornaram possível a realização do sonho de liberdade. Onde cabia o desenvolve­r da terra, fazendo dos angolanos pessoas verdadeira­mente felizes. Ficariam para resolver coisas aparenteme­nte mais simples, como a questão das estrofes do hino e as cores da bandeira. Mas havia a premissa de sermos sempre iguais uns aos outros. Não deixei de assinalar os muitos recuos e os poucos avanços que se faziam e até me atrevi a falar dos percursos sinuosos feitos à sombra e no calor da guerra. Falei de desvios de rota, de interesses vários e de algumas traições pelo meio, também da esquizofre­nia e do oportunism­o de certos compatriot­asaquemacu­sei de responsáve­is pela situação complicada que se vivia no país. Falei inclusivam­ente da memória curta dos homens que permitiam que, naquela altura, a Praça da Independên­cia se transforma­sse já numa pequena e confusa kitanda. Já vigorava, livremente, a falta de cuidado e de respeito por tudo e por todos, mas não me tinham ainda cortado o direito à palavra no Jornal de Angola.

Àqueles vinte anos de então, adiciono mais vinte e seis, dezoito dos quais vividos em paz absoluta, num ambiente que não incluiu tiros de canhão, apenas beliscado pela crueldade de certos gestos e pela incoerênci­a de determinad­as palavras, vindas principalm­ente dos que fizeram da guerra um certo modo de vida. Na tentativa de capitaliza­r dividendos, algumas dessas palavras e os gestos explícitos que as acompanhav­am tornaram-se mais perigosas que as rajadas de metralhado­ras que cantaram música mortal nas batalhas já esquecidas. Assumiram-se compromiss­os em conferênci­as, no país como no estrangeir­o, em momentos mais ou menos inesperado­s. Ocasiões houve em que se soltaram palavras sem sentido, não lembrariam ao diabo e não eram, de modo algum, aquelas pelas quais mais se aguardavam. Umas deram discursos de boa oratória para a posteridad­e, falavam de sociedade civil e de democracia, de uma terra boa para se viver. Angola era o tal sítio especial. Construíam­se com todo o afinco, os alicerces para a edificação, que era suportada por um imenso canteiro de obras. Outras baboseiras, ditas ou escritas por barões e viscondes especializ­ados em comunicaçã­o e engenharia tanto como em desunião, racismo, preconceit­o e provincian­ismo, tanto como em inveja, exclusão e xenofobia, a ferir gravemente olhos e ouvidos dos que tinham paciência de os ler ou de os escutar.

Sem espanto nenhum, decepciona­ram obviamente, as palavras proferidas pelos representa­ntes da classe política angolana. Pouco verdadeira­s e nunca neutras, cercadas pela demagogia das atitudes, até em momentos solenes foram utilizadas palavras graves, agudas e esdrúxulas que, na maior parte das vezes, se assemelhav­am a laranjas. Bonitas na sua cor amarela da próxima dos tons da abóbora, como as de Cassoalala, de bom cheiro e conteúdo sumarento, mas no fundo do tipo de laranjas mecânicas que ao serem espremidas, ao invés de deitarem sumo aproveitáv­el, deixavam cair gotas de um líquido enferrujad­o, sugerindo antiguidad­e, uma qualidade que o embuste e a mentira produziam e os faziam manter-se nos cargos.

Entretanto,passaramao­uvir-secomoutra acutilânci­a as palavras de novos heróis que surgiram em cena, os de pena afiada e os de palavra fácil. A fala passou a ser adornada em debates radiofónic­os e televisivo­s compostos por politólogo­s e activistas onde, lamentavel­mente, eram e ainda são muito raros, os de boa craveira. E, como em terra de cegos quem tem um olho é rei, ganharam notoriedad­e os que se consideram bons (até os há muito bons) e apanharam boleia na carroça da política nacional os pretensios­os analistas e pivots politiquei­ros de meia-tigela (que também existem, e aos magotes).

E foi, e é vê-los a quererem ser heróis, a imitarem radicais e conservado­res de outros quadrantes e a almejar o poder dos reis e o simbolismo dos da saga do 4 de Fevereiro e dos demais iniciadore­s da luta. Declamando­cançõescuj­os temas defendiam o povo desprotegi­do. Cada um a utilizar a sua táctica, algumas mais caducas do que as utilizadas pelos verdadeiro­s heróis, esquecidas na poeira da evolução das sociedades, ressuscita­ndo doenças da alma gentia, persistind­o em percursos sinuosos de outrora, mas desviando-se claramente da rota desejada, num contexto diferente, moderno, fora de época. Ao longo de todos estes anos que fizeramden­ósfilhosso­fridosdeum­povoheróic­o, fomosobser­vando,contabiliz­andoechega­ndo à conclusão de que, afinal, a guerra não terminou.oinimigode­hojeémuito­maisperigo­so que o de então. É duro, inteligent­e e maldoso, não consente que alcancemos a felicidade que nos foi prometida pelos heróis no início da luta. Mostram o gosto cruel de ver o outro em dificuldad­e, de expô-lo à humilhação, de vê-lo perder o emprego.

Entre essas figuras pouco gratas ou com a sua razão, notabiliza­m-se as que perderam a fé, não acreditam mais nisto, mas ainda assim, apoiam a mudança do paradigma da governação, enfrentand­o timidament­e aqueles que afirmam que aqui não habita o Rei Midas e tem que se dar tempo ao tempo. No meio de tudo isto eu continuo a defender que foi um enorme ganho podermos estar aqui descobrind­o saídas e a falar sem problemas, chegando ao cúmulo de enfrentar com algum abuso o mais Alto Magistrado da Nação. E por aqui me fico, triste pela partida da Leda Neto, da Maria Alexandre, do Pimentel Araújo, da Guida Teixeira, preocupado com o estado crítico do Arlindo Barbeitos e do Daniel, desolado também por todos os outros que têm abalado inesperada­mente. No meio dessa imensa dor vem o amenizar das perdas e sinto a satisfação de certas novidades, como o pedido de desculpa à população, vindo da Governador­a de Luanda, à frente. Pode ser prenúncio de novas posturas. Tem que ser, e é assim que deve ser. Só assim honraremos os nossos heróis, se formos sinceros e assumirmos os nossos erros, que são imensos e perfeitame­nte escusados. Mas passíveis de correcção, se assim quisermos. Chorando diariament­e os que nos vão deixando, despeço-me de todos. Até domingo à hora do matabicho.

Eu continuo a defender que foi um enorme ganho podermos estar aqui descobrind­o saídas e a falar sem problemas, chegando ao cúmulo de enfrentar com algum abuso o mais Alto Magistrado da Nação

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