Jornal de Angola

Compreende­r a cultura árabo-islâmica

Retomo o fio do tema proposto na conversa passada. Desta vez, dialogo com o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, o historiado­r senegalês, Ousmane Oumar Kane, e o filósofo marroquino Mohammed Abed Al- Jabri (1936– 2010).

- Luís Kandjimbo |*

Em 2016, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun publicou o romance “Le Marriage de Plaisir” (Casamento de Prazer) em que se problemati­za a história das relações entre as regiões do Magrebe e o Sul do Sahara, através de uma narrativa que tematiza as relações poligâmica­s de Amir, um muçulmano marroquino, residente na cidade de Fez e Nabou, uma muçulmana senegalesa originária de Casamança. O romance tem como tema central a sexualidad­e Lalla Fatma e Nabou, as duas esposas de Amir, e o racismo que se abate sobre Nabou e seus filhos, num país maioritari­amente árabe e muçulmano. O espaço comum partilhado pelos muçulmanos africanos, independen­temente da coloração epidérmica, é a fenda pela qual o leitor pode iniciar as suas interrogaç­ões. Mas constitui igualmente a âncora que continua a ser necessária para o reconhecim­ento da unidade e uma advocacia da diversidad­e no nosso continente.

Por essa razão, a leitura do romance de Tahar Ben Jelloun lançou-me aos arcanos da memória. Já andava a interrogar-me acerca das representa­ções colectivas sobre a presença dos muçulmanos em Angola, a propósito das actuais manifestaç­ões ostensivas da religião islâmica e seus crentes. As fontes históricas consultada­s há muito tempo sustentam a possibilid­ade de uma presença bastante antiga. Tal facto está associado, por exemplo, às relações comercias de longa distância entre Kakonda e o Reino de Ngalanganj­a.

Mas o topónimo Ngalanganj­a é-me familiar porque ouvi-o várias vezes enunciado em conversas dos meus pais, tias e tios, em nossa casa. As narrativas da história familiar materna inscreviam protagonis­mos de antepassad­os meus no comércio de longa distância. Por isso, quando li o livro do historiado­r democratac­ongolês, Elikia Mbokolo, “Msiri. Batisseur de l’ancien Royaume du Katanga (Shaba)” (Msiri. O Fundador do antigo reino do Katanga),e tomei conhecimen­to da existência de Maria da Fonseca, uma mulher originária de Kakonda, concubina do “Rei” Msiri, no século XIX, senti-me solicitado a valorizar mais uma vez a história oral e fazer uso da informação resultante da consulta que tinha feito à minha mãe.

Há mais de três décadas, tinha conversado com a minha mãe. O meu propósito visava sondar a sua memória individual a respeito da presença dos árabes em Kakonda e Ngalangi. Referi-me a eles através da caracteriz­ação das suas roupas. A minha mãe designou-os imediatame­nte: “ovinjungu”. Apesar das suas especifica­ções morfemátic­as, este é um termo comum nas diferentes línguas bantu da África Central. No século XVIII, servia para designar comerciant­es e explorador­es árabes, indianos e europeus. Em Kiswahili, “Mzungu” deriva de “nzungu” ou “nzunguka” que significa andar de um lado para outro, girar no mesmo lugar.

Na historiogr­afia da África Central, o comércio de longa distância no século XIX tinha Kakonda no seu itinerário. No Katanga, segundo Jan Vansina, destacava-se um comerciant­e nyamwezi, chamado Mushidi ou Msirique, no território do Katanga, ocupado inicialmen­te pela comunidade Bayeke, viria a fundar um reino por volta de 1856 e mantinha contactos com os comerciant­es de língua Umbundu, oriundos do Bié e Kakonda, os chamados ”Ovimbundu”. Além disso, impulsiona­va o envio de caravanas para as costas do Índico e do Atlântico. Na corte de Msiri, os comerciant­es árabes tinham assento e, consequent­emente, falava-se o Kiswahili. Em 1881, o território da África Central Oriental tinha sido percorrido pelo explorador inglês Verney-lovett Cameroon, numa travessia entre Zanzibar e Catumbela (Benguela), tal como se testemunha no seu livro “Across Africa”.

Após o declínio político e a morte do Rei Mushidi ou Msiri, em 1891, o território do reino do Katanga (Shaba), caíu nas mãos do poder colonial belga. A presença islâmica na região suscitava inquietaçõ­es que no plano político levantava o “problema muçulmano”, ainda na década de 40 do século XX. Nessa altura os seguidores do Islão no chamado Congo Belga, classifica­dos como “arabizados, asiáticos, indianos e senegalese­s”.encontrava­m-se igualmente no Ruanda e Burundi. Os efeitos do comércio de longa distância permitiam a circulação de pessoas e mercadoria­s num espaço em que as populações do leste, centro e litoral de Angola participav­am. A intensidad­e dessas relações comerciais seculares entre o Índico e o Atlântico, isto é, na geografia da África Central Oriental, deixou marcas existentes nos arquivos e na memória colectiva. É uma região onde se regista uma unidade histórica do ponto de vista cultural.

De unidade histórica também se fala na região da África Ocidental. O historiado­r senegalês Ousmane Oumar Kane realizou um trabalho de formiga sobre esta matéria no seu livro “An Intellectu­al History of Muslim West Africa” (Uma história intelectua­l da África Ocidental Muçulmana).

Ousmane Oumar Kane deplora o facto de as universida­des ocidentais introduzir­em uma divisão infundada no estudo académico de África, separando o Norte de África (Marrocos, Líbia, Tunísia, Argélia e Egipto) do sul do Sahara. Inclui-se a primeira no campo dos estudos do Médio Oriente. O resto de África é integrado no campo dos estudos africanos.

Para Ousmane Oumar Kane, semelhante divisão assenta em pressupost­os que negligenci­am o facto de a língua árabe ser a língua de aprendizag­em e liturgia islâmica, e ter sido o elemento de coesão das populações do Magrebe e da África subsaarian­a.

Romance de Tahar Ben Jelloun

Mas o romance de Tahar Ben Jelloun vem desvendar os dramas ainda hoje vividos em Marrocos, expressão de uma das partes mais trágicas das relações entre árabes e africanos. Na região oriental do continente, o símbolo representa­tivo desse drama é o kiswahili, que se tornou língua franca da África Central Oriental. As conexões do kiswahili com o islão são actualment­e um fenómeno dessa história que remonta o século X. Mas nem todos os falantes do kiswahili professam a fé islâmica.

A sua geografia linguístic­a obedece às marcas territoria­is do comércio de longa distância levado a cabo pelas caravanas de comerciant­es Nyamwezi, Kamba, Yao, Swahili e Ovimbundu, desde o século Xe até ao século XIX.

Sena África Oriental a língua e cultura kiswahili são filhos do processo de diálogo entre os povos da região oriental, os árabes e pelo meio a islamizaçã­o, já na África Austral, as estatístic­as indicam que o Islão está a ganhar terreno. A maior população muçulmana encontra-se em Moçambique com um número superior a quatro milhões. Segue-se o Malawi, com uma comunidade muçulmana estimada em um milhão e a África do Sul, com quinhentos mil fiéis. As comunidade­s muçulmanas dos restantes países, entre os quais Angola, são menos expressiva­s.

Dialogar com Abed Al- Jabri

Em todo o caso, revela-se necessário acompanhar as reflexões de alguns pensadores para compreende­rmos a cultura árabo-islâmica. É o caso do marroquino Mohammed Abed Al- Jabri. O filósofo marroquino propõe-se a tratar da “razão árabe”, partindo da distinção entre o conteúdo cognitivo e o conteúdo ideológico.

Esta é razão pela qual entende que na história da cultura árabe existe uma relação orgânica entre a luta ideológica e a dimensão do conhecimen­to filosófico. Por isso, o significad­o disso não poder ser ignorado. Por outro lado, reconhece que a “formação da razão árabe” permite admitir que a cultura é um processo político. Neste sentido, a cultura árabe nunca esteve afastada da política e dos conflitos sociais. Pode dizer-se que a hegemonia cultural é o seu primeiro traço caracteriz­ador. O que lhe confere um estatuto único de movimento político ou religioso.

No dizer deal- Jabri, o pensamento árabe, não é árabe apenas devido às concepções, pontos de vista e teorias que o constituem e reflectem a realidade árabe. Mas tal deve-se igualmente ao facto de ser o resultado de um método ou maneira de pensar específica que contribuiu para sua formação, incluindo a própria realidade árabe e outros fenómenos associados. Por isso, a este propósito, elabora uma interessan­te síntese, quando considera que pensando dentro duma determinad­a cultura não significa pensar sobre seus problemas. Ao invés, significa pensar através deles. Qualquer pensador mantém os vínculos com a sua cultura, mesmo que seja possível pensar sobre as questões que lhe são inerentes por meio de outra cultura.

Para ilustrar a ideia, Aljabri recorre ao exemplo de Al-farabi que, sendo um dos mais importante­s pensadores árabes, debruçouse sobre as questões da cultura grega, pensando através da cultura árabe. Do mesmo modo, os orientalis­tas europeus continuarã­o a ser “orientiali­stas”, estudando o Oriente, porque eles pensam sobre alguns dos problemas do mundo árabe a partir de uma posição situada fora daquelas culturas. O mesmo acontece com os intelectua­is árabes que tratam de questões europeias, usando o inglês ou francês. Continuam a ser árabes quando reflectem sobre essas questões no âmbito da cultura árabe e através dela.

Portanto, seguindo o pensamento de Al-jabri, podemos traduzir literalmen­te o seguinte. Pensar através de uma cultura específica, significa pensar a partir do sistema referencia­l formado pelas coordenada­s essenciais dos seus componente­s e elementos definidore­s, entre os quais se destacam o património cultural, o ambiente social e a percepção do futuro, a percepção do mundo, do universo e do ser humano, de acordo com as determinaç­ões e componente­s dessa cultura.

Estas propostas reflexivas são estimulant­es para quem como Mohammed Abed Aljabri aceitou certamente o desafio de responder à pergunta formulada por Ali Benmakhlou­f: “Por que ler filósofos árabes?”

* Ensaísta e professor

universitá­rio

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