Palavra como um transmissor dos costumes
A etimologia da palavra pátria é importante para se compreenderem as alegorias e figurações em que pátria é a nação imaginada como mulher, descrita como um corpo que nutre e aconchega. Nesse sentido, é interessante ressaltar que a palavra pátria, ainda que guarde muitos dos significados relacionados com o poder do pai, pater, deriva da palavra latina patria, feminina, preservando de sua origem uma gama de sentidos ligados à mulher, à mãe, por excelência.
Após a poética engajada socialmente que, em Angola, cantou a certeza da liberdade nas décadas de 60 e meados de 70, surgiu, sobretudo nos anos 80, uma poesia que já não tinha como foco principal questões referentes à colectividade social, mas, sim, indagações existenciais, inerentes ao “eu / individual”. Essa nova poética inseriu-se num paradigma de desencanto. As promessas feitas durante as lutas pela independência não haviam sido totalmente cumpridas. Uma das únicas utopias que restou foi a poesia como espelho de reflexão. Esse novo lirismo, no qual se encontra a obra poética de Paula Tavares, muitas vezes, denunciou a corrupção do poder, porém não foi só esse o seu objectivo. Desejou também saudar o amor, a mulher, a vida, a oratura, os mitos da região Sul e/ou de Angola no cômputo geral, o erotismo, por meio de um fazer poético-narrativo que primou pelo labor estético, preservando, assim, a história e a memória das etnias angolanas.
Ana Paula Tavares é uma escritora que nasceu na província da Huíla em 1952. Historiadora, antropóloga, é também mestre em Literatura Africana de Expressão Portuguesa. Dentre várias obras literárias publicou “Ritos de “(1985); “O Sangue da Buganvília” (1998); “O Lago da Lua” (1999); “Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos” (2001) e “Ex-votos”, (2003).
Paula Tavares usa a palavra como instrumento transmissor dos costumes de sua terra, ao mesmo tempo em que inaugura uma linguagem mais próxima do corpo e da voz feminina, fazendo também críticas à guerra e à corrupção que tomaram conta do corpo social angolano durante muitos anos. Em seu percurso, traz à tona, recriada poeticamente, a sabedoria tradicional dos povos do sudoeste angolano e faz da sua experiência, adquirida a partir da percepção de um olhar lírico, metáfora da sabedoria coletiva: “Boi, boi, / Boi verdadeiro / guia a minha voz / entre o som e o silêncio” (Tavares, Paula, 2011, p. 117)
Intensa e densa, ao recorrer à memoria, recortar, reinventar e recontar flecções da vida do campo, através de sua poesia, Paula Tavares, simultaneamente, recria a história da mulher angolana, suas experiências, alegrias e dores. A figura feminina é sempre representada por linhas banhadas de lirismo e erotismo. O seu primeiro “Ritos de passagem”, publicado em 1985, tem dupla significação: além do próprio ritual de iniciação da autora na poesia, aborda o ritual feminino de passagem da região do sudoeste angolano.
Essa poesia, densa, traz o corpo da mulher e seu erotismo como temática fulcral, irrompendo na literatura a partir de um viés transgressor dos costumes com uma escrita e dicção no feminino. Nela (sua poesia) encontramos elementos principais para a construção e alusão ao erótico, bem como sugestões de uma perspectiva de leitura a partir das questões de gênero.
Nessa ousada proposta poética, Paula Tavares constrói a sua alegoria estética fazendo recurso à linguagem identitária da sua terra natal, onde os elementos como a massambala, a tacula, as machambas, os imbondeiros, o barro, a lua, o lago, os frutos, os bois, a catana, a cerveja, o milho, e tantos outros que compõem a diversidade e riqueza cultural da vida do campo, são constantemente solicitados por seu fazer poético. Além disso, a mulher é constantemente representada, seja nas suas funções sociais, como mãe, e/ou principalmente, como um ser oscilante em busca da subjectividade e do seu espaço sócio-existencial, deixando, essa proposta estética, que veio trazer para o cenário poético um sujeito lírico que fala do gozo do mirangolo, “Testículo adolescente / purpurino / que corta os lábios / com sabor ácido / da vida” ...
É pela voz da mulher que a escrita poética se faz pele de um outro corpo, um corpo que pulsa e que emite seus próprios ruídos. O sujeito poético recorre à memória e à tradição para que o tempo dos “frutos silvestres” não seja esquecido: um passado longínquo dos “Vatwa” do sul, ancestrais dos povos pastores que habitam o sudoeste angolano. O eu lírico guarda um “tempo sem tempo”, do “Boi” (epígrafe que abre a obra); portanto, tempo da tradição. Para esse fazer, as lembranças se farão necessárias, úteis e presentes.
“Origens”
Guardo na memória do tempo / em que éramos vatwa, / os dos frutos silvestres. / Guardo a memória de um tempo / sem tempo / antes da guerra / das colheitas / e das cerimônias”.
O corpo e os outros
A palavra corpo remete a uma classificação generalizante, posto que ele não existe enquanto diferença, mas como categoria neutra. Toda vez que a neutralidade dentro da língua quer trazer uma perspectiva mais genérica, a escolha do termo fica sempre no masculino.
Os seres humanos têm a capacidade de se desenvolverem porque vêem e sentem, enquanto corpos que se unem, amam-se, entregamse e também se rejeitam, destroem-se, violentam-se e se matam. A relação estabelecida com o corpo, e com os outros, é parte do próprio conceito, visto que as significações múltiplas estão subordinadas aos lugares que os compõem.
Corpos são cadeias de significados. E cada um deles aparecerá enquanto matéria social, e em lugares nem sempre específicos. Mas, ainda assim, em lugares, porque eles existem. A sua materialidade é um elemento importante para a reflexão sobre seus significados, ainda que eles não fiquem apenas nesse plano. O corpo, então, é um sintagma, afinal, o que prevalece é o seu conjunto, e não as suas derivações. Os auxílios científicos da biologia, medicina e dos seus sinónimos em dicionários seriam suficientes para abarcar as suas significações? Ou não, para além dos termos primários, é possível fertilizá-lo de novos conceitos?
Em “Ritos de Passagem”, os ciclos femininos são regulados pelos ciclos da natureza: “No lago branco da lua / lavei meu primeiro sangue / Ao lago branco da lua / voltaria cada mês / para lavar / meu sangue eterno / a cada lua / No lago branco da lua misturei meu sangue e barro branco / e fiz a caneca / onde bebo / a água amarga da minha sede sem fim / o mel dos dias claros. / Neste lago deposito / minha reserva de sonhos / para tomar.”
Nos versos acima, é possível observar o entrecruzamento terra/mulher nas imagens suscitadas em “misturei meu sangue e barro branco”. Essa associação entre a natureza externa (ciclo da lua) e a natureza subjectiva (ciclo menstrual) vem ao encontro da ecosofia guattariana ao sugerir a harmonização/integração entre o humano e a natureza. “Neste entrelace poético, os sonhos se renovam ciclicamente no processo de “...lavar / meu sangue eterno/ a cada lua”, ou seja, o sangue da mulher é aqui ressemantizado e alcança o estatuto de sangue da nação/terra constantemente derramado maculando a esperança de saciar-se a sede “no mel de dias claros”, dias de paz, de restauração e de uma nova história sendo construída.
É nessa perspectiva que podemos afirmar que em Paula Tavares, os olhos, as mãos e os ouvidos do sujeito poético, possibilitam o encontro com os “eus naturais” que não expressam apenas o ser que representam, mas aqueles que estão sincronizados com o mundo no qual estão inseridos. O corpo está sendo tecido pelas mãos que o criam, passando a território a ser descoberto, e o tacto, o sentido escolhido por aquele que deseja reconhecer esse lugar. Os “frutos amargos” revelam a presença de superfícies sensoriais no corpo lírico e, de que maneira, esses estímulos corroboram para a construção de uma poesia que, tatuada pela sensibilidade, permite novas possibilidades de relações com o mundo exterior, como nos diz o sujeito poético:
“Meu corpo / É um tear vertical / Onde deixastes cruzadas / As cores da tua vida: duas faixas um losango / Marcas da peste. // Meu corpo É uma floresta fechada / Onde escolheste o caminho // Depois de te perderes / Guardaste a chave e o provérbio.”
O título do poema citado já sugere um objecto feito no tear, o tecido, em que mãos são envolvidas nesse processo de criação. O primeiro verso tem como núcleo o sintagma “corpo” que, ao dialogar directamente com o título, sugere que o próprio tecido seja o corpo lírico em evidência. O segundo verso vem ractificar essa simbiose ao definir claramente o corpo como “um tear vertical”: um ritual realizado pelas mãos, pela sensibilidade do tacto.
Pode-se dizer, então, que, passada a urgência das lutas revolucionárias, o sujeito poético desloca-se dos discursos que a descrevem esvaziada de si mesma, para assumir, com seus versos, a palavra falada nos rituais vibrantes da oralidade, o corpo expresso em viva voz, gestos, emoção e sensualidade. Essa consciência das sensações do corpo tão significativa de culturas que têm uma larga tradição oral pode possibilitar que a literatura, arte da palavra escrita, faça-se como um acto de realce e preservação da identidade e personalidade cultural angolana.