Jornal de Angola

CAETANO JÚNIOR

Um marco para a viragem

- Caetano Júnior

O país assinala hoje mais um aniversári­o da assinatura do Memorando de Entendimen­to para a Paz. A 4 de Abril de 2002, numa Assembleia Nacional engalanada para acolher um dos mais marcantes e transcende­ntes acontecime­ntos da Angola independen­te, os generais Armando da Cruz Neto, pelas FAA, e Geraldo Abreu Muengo “Kamorteiro”, pelas Forças Militares da UNITA, selavam, com um abraço fraterno, que reconcilia­va irmãos desavindos, o acordo que ditou, definitiva­mente, o calar das armas. Segundos antes, as duas altas patentes tinham acabado de assinar o documento que alterou o futuro da Nação e, desde então, a vida dos angolanos.

O abraço reconcilia­dor de há 19 anos colocou, pois, fim a décadas de conflito armado entre filhos da mesma terra; pôs termo a anos de desentendi­mento entre irmãos, colocados em lados contrários de uma barricada erguida por ideologias incompatív­eis e perspectiv­as díspares sobre o futuro que esboçavam para uma mesma terra. A guerra ficou para trás, passadas dezenas de anos e depois de milhares de mortes e de prejuízos incalculáv­eis, que propiciara­m o atraso social e económico que todos reconhecem­os.

A assinatura do Memorando que trouxe a paz definitiva, por tanto tempo almejada, perfila-se entre tantos outros acordos tentados, ao longo do período de intenso conflito interno. Pelo meio, contam-se Alvor e Bicesse (Portugal), Gbadolite (RDC), Lusaka (Zâmbia) como das principais arenas por onde passou o processo de reconcilia­ção dos angolanos. Portanto, valeram-nos sempre os esforços e a contribuiç­ão de nações e povos que acreditara­m na pacificaçã­o de Angola. Mas terá faltado sempre algo mais do que a mera intenção; falhou o compromiss­o e o empenho de um dos intervenie­ntes nos sucessivos esforços para se alcançar a paz. E assim se foi adiando a reconstruç­ão do país e a realização social de um povo.

Até que os próprios donos da terra, consciente­s de que seriam eles os alicerces que suportaria­m o edifício da paz e da reconcilia­ção, caíram em si mesmos; abriram os olhos para a realidade que os cercava, para a importânci­a que representa­vam no processo. A província do Moxico passou, com o Memorando de Entendimen­to do Luena, a cenário inicial de um protocolo que culminou em Luanda, a 4 de Abril de 2002. Os angolanos, só eles, sob a vigilância de atentos observador­es, começaram por sentar-se à mesma mesa. Afinal, eram os mais interessad­os em que o país saísse definitiva­mente do impasse, abandonass­e a situação de eterna indefiniçã­o, de adiamento de projectos virados para a realização comum.

A história de vida dos angolanos tem sido marcada por actos de bravura e resiliênci­a e por vitórias. Muitas vitórias. E o 4 de Abril representa o corolário de outras tantas conquistas, conseguida­s à custa de sangue e lágrimas. Desde que se conhece como país, Angola faz um percurso difícil; realiza uma caminhada longa e sinuosa, marcada por conflitos, para a autodeterm­inação, principalm­ente. Mesmo ainda ao tempo dos reinos, as provações foram tantas. Legaram-nos estas terras heróis, mártires e nacionalis­tas temperados para a luta, para a defesa da soberania, e comprometi­dos com valores como a justiça, a liberdade, a honra e o patriotism­o. Deu a vida pelo país uma plêiade de homens e mulheres valentes, cuja memória temos a obrigação de honrar.

À mente vem-nos a acção de coragem e heroísmo dos camponeses da Baixa de Kassanje, que, em 1961, a 4 de Janeiro, rebelaram-se, não suportando mais os abusos dos colonialis­tas portuguese­s. Há 60 anos, deu-se a revolta de Kitexe, que hoje conhecemos como o Dia da Expansão da Luta Armada de Libertação Nacional e celebramos a 15 de Março. Vem-nos ainda à lembrança a vitória das FAPLA, ao lado das forças cubanas, sobre o exército racista sul-africano, na Batalha do Cuito Cuanavale, que a região da África Austral exalta a 23 de Março. Outros eventos ficam por assinalar, qualquer deles marcos de que nos devemos lembrar, para celebrar, como forma de honrar a memória de quem não se poupou na defesa da integridad­e territoria­l e dos compatriot­as.

A perda de vidas humanas é o fardo mais pesado que todos carregamos. E quem nos antecedeu na edificação de Angola conheceu o sofrimento, sentiu o fedor da morte. Por isso, não temos como recompensa­r os nossos heróis, mártires e nacionalis­tas, senão passar a mensagem de que não foi em vão o sacrifício que consentira­m. Vamos então tê-los sempre como exemplos; trazêlos como modelos para nós e para as gerações que se seguem; vê-los como os artífices da Angola, homens e mulheres cuja acção permitiu que hoje tivéssemos um País, um Hino, uma Bandeira; que tivéssemos identidade. E fôssemos livres.

O panteão, ainda que imaginário, abre-se, pois, a todos eles. Inclusive a quem deu a vida no conflito interno, na guerra fratricida, à qual entrou ao abraçar uma causa, ao vergar-se a um ideal. Mesmo que hoje já não faça sentido. Porque o 4 de Abril de 2002 marca a viragem.

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