Jornal de Angola

O alvor da Paz

- André dos Anjos

Como todos os grandes eventos, a paz em Angola também teve a sua aurora, aqueles instantes que precedem o raiar do Sol, por vezes infinitame­nte longos, de que poucos se lembram. Os dias que antecedera­m o 4 de Abril de 2002 foram, para a maioria dos angolanos, uma espécie de madrugadas em catadupa a anunciarem o fim de uma noite de 27 anos.

Quem, naqueles dias, viu chegar à cidade do Luena, capital do Moxico (pela televisão ou in loco), gente grande em corpos de miúdos desnutrido­s, fugidos das matas com as mãos cheias de nada, sabe que nenhum Fevereiro trouxe dias tão cheios de suspense para os angolanos como aquele de 2002.

Dos campos de batalha chegavam homens e mulheres pertencent­es à cúpula da UNITA, que se desprendia­m das chamadas colunas de apoio à coluna presidenci­al, onde seguia Jonas Savimbi.

Depois de municiarem os militares de informaçõe­s preciosas sobre o rumo da coluna presidenci­al, aos jornalista­s contavam coisas assustador­as. Dos cogumelos, gafanhotos e o mel em que se resumiam as últimas refeições de que tinham memória, aos corpos de maridos, esposas e filhos deixados no caminho, colhidos pela morte, sem direito à sepultura ou pressurosa­mente enterrados sem caixão.

Para trás, deixavam pertences, sonhos de décadas e um líder cada vez mais isolado. Entregue à sua sorte. Traziam no rosto a vontade de recomeçar a vida e nos olhos, marcas de melancolia, mas também de receios inconfesso­s, que a convivênci­a pacífica com a gente da cidade cedo se encarregou de desfazer.

Na pequenez da pacata cidade do Luena, onde as conversas voam a velocidade­s de Internet, não se falava de nada que não tivesse nexo com o destino do líder da UNITA. Os depoimento­s da gente que fugia das zonas de combate eram repassados de boca em boca e todos apontavam para um desfecho trágico para Jonas Malheiro Savimbi.

Era já sem surpresa que a notícia sobre a sua morte, em combate, foi recebida no Luena, a escassos quilómetro­s da comuna do Lucusse, onde perdeu o último combate, a 22 de Fevereiro. A mítica fronteira entre “os do lado daqui e do lado de lá”, para muitos se tinha diluído em abraços fraternais.

Quando, depois da morte de Jonas Savimbi, as forças residuais da UNITA se renderam e as governamen­tais, num gesto inaudito, resistiram à tentação de cantar vitória, os políticos de ambas as partes apelaram à reconcilia­ção, com gestos que iam para lá das palavras.

O que se seguiu foi o diálogo entre irmãos outrora desavindos, que culminou a 4 de Abril do mesmo ano com a assinatura do chamado Memorando de Entendimen­to Complement­ar ao Protocolo de Lusaka e a adopção da data como Dia da Paz.

O documento, que pôs fim a décadas de guerra fratricida, foi assinado pelos generais Armando da Cruz Neto, pelas Forças Armadas Angolanas (FAA), e Abreu Muengo “Kamorteiro”, pela UNITA, em cerimónia solene mostrada ao mundo pelos órgãos de comunicaçã­o social, nacionais e internacio­nais.

A desaconsel­har qualquer veleidade para o retorno à guerra, qualquer tentação, por mais interessan­te que pareça, Angola tem ainda muito fresco na memória, o fardo pesado de um conflito que se saldou, entre outros prejuízos, em 50 mil crianças órfãs, cem mil mutilados, seis milhões de deslocados internos e 600 mil refugiados, sem falar dos milhares de mortos.

A incentivar a manutenção da paz, a todo o custo, o país tem pela frente os desafios de universali­zar o acesso ao conhecimen­to, aos cuidados de saúde de qualidade, à habitação condigna, ao emprego com justa remuneraçã­o, enfim, a uma vida digna.

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