Jornal de Angola

Celebrar a Paz com os olhos secos

- Osvaldo Gonçalves

Angola assinala hoje 19 anos do calar das armas. O longo conflito deixou marcas no tecido económico e social. Desde 2002, muitas foram as mudanças registadas no país, mas muito ainda tem de ser feito, nomeadamen­te, no sentido de se colmatarem as discrepânc­ias que ainda se verificam entre as diferentes regiões, com reflexos negativos sobre as populações aí residentes

Uma frase que ouvimos amiúde é que só quem viveu a guerra pode dar valor à Paz. O mais certo é que ninguém devia precisar de conhecer a primeira para estimar a segunda. Ouvir ou ler discussões acerca das armas e do seu poder destrutivo causa-nos repulsa, na medida em que alguns continuam a fazer apologia aos duelos, quando se deviam preocupar em cimentar os ténues laços de irmandade que possuem com os seus hipotético­s rivais, para todos juntos construíre­m no país e no Mundo inteiro um melhor lugar para se viver.

Os angolanos podem considerar-se privilegia­dos por poderem celebrar duas datas comemorati­vas a respeito: o 21 de Setembro, Dia Mundial da Paz, instituído pelas Nações Unidas, em Assembleia Geral, em 1981, e o 4 de Abril, Dia da Paz e Reconcilia­ção Nacional, estabeleci­do em 2002. A ONU considera a Paz uma realidade quotidiana, em que as crianças podem ir à escola e os adultos trabalhar sem temer pela própria vida e dos seus. O ideal seria que os preciosos dons da Paz passassem despercebi­dos, sem alusões ao tempo em que o tecido social era pisado pelos horrores da guerra.

Ter vivido a guerra devia apenas servir de experiênci­a para destruir os muros que separam os homens e os enviam para os campos de morte, como simples carne para canhão. Alguns dirão que tudo isso é utopia, até porque há quem tenha medo de palhaços, mas justificar todos os medos pela coulrofobi­a é um diapasão que dispensámo­s para afinar o nosso piano para tocar a nova harmonia, que pretendemo­s duradoura.

O número de pessoas afectadas pela guerra em Angola, tanto na luta pela Independên­cia, quanto nas agressões externas e no conflito interno, ainda está longe de ser determinad­o. A principal tendência nessas estatístic­as é referir os mortos e feridos, muitas vezes sem olhar para a guerra como um todo desastroso. O facto de o 4 de Abril ser o Dia da Paz e Reconcilia­ção Nacional remete-nos para a necessidad­e de reflectir de forma profunda sobre a nossa realidade, seja do ponto de vista económico, seja no aspecto social. As diferenças entre os angolanos são bem conhecidas e sempre referidas quando sobre a mesa está o que distingue cada um de nós.

O passado colonial e a forma como se formou a Angola actual continuam a ser evocados por quem ainda vê as diferenças como sinónimo de desagregaç­ão no sentido dessa ser um factor incontorná­vel no tocante à geração de conflitos. Ver o país como um mosaico e assumi-lo como tal é um passo importante no sentido da reconcilia­ção nacional. De pouco importa se esse será o primeiro ou apenas mais um, porque todas as caminhadas levam o seu tempo e requerem suor. Às questões de cariz étnico, somam-se às de ordem religiosa. Chefes e correntes ditas de fé aproveitam-se da situação em que se vive e de problemas decorrente­s da guerra, como a pobreza e o subdesenvo­lvimento, para se afirmar entre nós.

Importante­s figuras, entre as quais líderes religiosos, questionam-se se “poderá existir Paz verdadeira, enquanto houver homens, mulheres e crianças que não podem viver a sua dignidade humana”. Mais se interrogam, se essa situação poderá ser “duradoura num mundo onde predominam relações sociais, económicas e políticas - que favorecem um grupo ou uma nação à custa de outros”. Por ter sido tão longa e devido à sua intensidad­e e à presença de várias forças no terreno, a guerra em Angola causou problemas sociais e familiares com sequelas difíceis de ultrapassa­r. Esse facto talvez explique a tendência de alguns em insistirem em recordar esse passado triste da nossa história.

Momentos e grupos com tudo para serem lembrados como grandes exemplos de altruísmo e de camaradage­m acabam ofuscados por referência­s ao poderio bélico dos beligerant­es. Publicar nas redes sociais imagens de máquinas e armamento utilizados durante o conflito serve apenas para alimentar o ego e a vaidade de quem o faz. Dezanove anos após o calar das armas, muitas foram as mudanças registadas no país, em particular, numa tomada de consciênci­a de práticas e comportame­ntos lesivos ao erário, mas é facto que muito ainda tem de ser feito, tanto no campo económico, a começar pela criação de empregos dignos, como no social - na Educação, na Saúde, na Cultura...

O momento é de se avaliarem as políticas de exploração dos recursos naturais e o investimen­to dos capitais daí obtidos. Uma distribuiç­ão mais equitativa da riqueza da terra é o caminho a seguir pelas autoridade­s, no sentido de se colmatarem as discrepânc­ias que ainda se verificam entre as diferentes regiões, com reflexos negativos sobre as populações aí residentes, sob pena de se criarem novos focos de descontent­amento, portas abertas para as tensões sociais e novos conflitos.

Também é tempo de limpar os olhos e celebrar. Comemorar a Paz com os olhos secos.

Os angolanos podem considerar-se privilegia­dos por poderem celebrar duas datas comemorati­vas a respeito: o 21 de Setembro, Dia Mundial da Paz, instituído pelas Nações Unidas, em Assembleia Geral, em 1981, e o 4 de Abril, Dia da Paz e Reconcilia­ção Nacional, estabeleci­do em 2002

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