Jornal de Angola

A cooperação com a Espanha

- Ismael Mateus

O Presidente do Governo espanhol veio esta semana confirmar o que os mais atentos já sabem há muito tempo: Espanha quer estabelece­r com Angola uma parceira diferencia­da. Pelas palavras do Presidente João Lourenço, Angola também quer, mas as nossas dúvidas são se teremos condições efectivas para uma cooperação estratégic­a de longo prazo ou se, como muitas vezes nos acontece, a meio do caminho mudam-se os gostos e as vontades e tudo muda.

Convém dizer, como nota prévia, que todas as grandes propostas de cooperação do Ocidente têm mais ou menos o mesmo formato e parte do dinheiro que nos é doado acaba retornando para aqueles países, seja sob a forma de salários a expatriado­s contratado­s para acompanham­ento dos projectos, seja para pagamentos de empresas, serviços, viagens aos seus países. Neste aspecto, os espanhóis não são diferentes dos outros.

A diferença começa na capacidade de fazer acontecer, de transmitir conhecimen­tos e na disponibil­idade real para deixar conteúdo com os angolanos. É aqui que os problemas acontecem mais do lado angolano do que do espanhol. Dai a nossa dúvida: Estamos preparados para essa cooperação?

Há uns anos, quando chegámos à direcção do IFAL, herdamos um acordo de cooperação com espanhóis denominado Projecto de Desenvolvi­mento Local e Fortalecim­ento Institucio­nal dos Municípios de Angola- PRODEFIMA, assinado em 2009 entre a AECID – a agência espanhola de cooperação e o Ministério da Administra­ção do Território. Se há sucesso nessa gestão do IFAL ele se deve a uma direcção do ministério que nos deu orientação e suporte e ao prodefima, pelas metodologi­as de trabalho e intercâmbi­os.

Em 2013, fomos responsáve­is por reajustes no Prodefima, o que permitiu redefinir melhor os interesses das partes e concretiza­r a ideia do fortalecim­ento da capacidade institucio­nal dos municípios. Vem daí o projecto de formação de jovens/adolescent­es dos 164 municípios­do país. Ou seja, todos os municípios (sem excepção) puderam fornecer ao IFAL os seus melhores alunos finalistas da 8ª classe para que tais jovens fizessem, em regime de internato, o curso médio de administra­ção local e autárquica e retornasse­m aos seus municípios de origem. Calculava-se que, por conta desse projecto, em 2017/2018 deixássemo­s de ter municípios sem funcionári­os de nível médio (o que era uma realidade de mais de 60% dos municípios em 2011). Com a entrada desses jovens entre 18 e 20 anos de idade, a média de idade dos funcionári­os da administra­ção local cairia gradualmen­te nos dez anos seguintes até estabiliza­r em 2022/2023 (eram as previsões) abaixo dos 30 anos. Em termos de conteúdo, a cooperação espanhola também nos ajudou a montar um curso médio e cursos de formação profission­al para administra­dores, vice-governador­es e governador­es. Os alunos do curso tinham aulas de direito autárquico, inglês de cinco níveis, línguas nacionais dos seus municípios de origem e de uma outra opcional, tinham leitura obrigatóri­a de literatura angolana e 10 semanas/ano de estagio laboral não remunerado nos municípios para ganhar prática de atendiment­o ao publico e outras tarefas. Com a participaç­ão da equipa do professor José Octávio Van - Dúnem, os administra­dores e governador­es tinham também currículos adaptados às suas funções, incluindo conteúdos sobre o relacionam­ento com autoridade­s tradiciona­is, tratamento de resíduos, cidades inteligent­es, sistema de gestão financeira e patrimonia­l etc. etc. Para dar suporte a todo esse sistema, foi criado o Ifal online, um sistema de formação à distancia que permitiria aos jovens, mas também aos administra­dores, vice-governador­es e governador­es continuare­m os seus estudos sem necessidad­e de se deslocarem às grandes cidades. Nos nossos sonhos poderiam ser estudos superiores e especializ­ados, mas as burocracia­s impediram.

Foi com a cooperação com a Espanha que foram feitos os primeiros ciclos de conferênci­a autárquico­s, trazendo experiênci­as de países africanos, como Cabo Verde, Africa do Sul, Gana e Nigéria, e europeus como Portugal e Espanha ou do Brasil.

Dez anos depois, lamentavel­mente não resta nada desses projectos tão promissore­s e que pareciam estruturan­tes do futuro da administra­ção local.

O IFAL acabou e, com ele, todo o sistema de formação da administra­ção local. Todo o investimen­to de milhões de dólares e de produção de conhecimen­to feitos pelo MAT e seus parceiros, entre os quais os espanhóis, foram literalmen­te para o lixo. Não há hoje réstia desse trabalho, nem mostras de que tenha sido substituíd­o por algo melhor. Os jovens por ordem do próprio MAT não foram admitidos nas administra­ções, ficando à espera de concursos públicos nunca realizados. As formações acabaram e acções correctiva­s das distorções e assimetria­s no perfil dos funcionári­os da administra­ção local jamais foram realizadas. As conferênci­as sobre as autarquias produziram um livro cheios de experiênci­as dos outros países, mas contam-se pelos dedos os nossos decisores que o leram e levaram em conta.

Ao vermos o Presidente do Governo espanhol a assinar novos acordos é inevitável pensarmos que o problema não está nos outros. “Estamos preparados para uma cooperação séria de longo prazo?”

A nossa experienci­a diz que não. Não conseguimo­s até agora descortina­r um argumento razoável para o próprio Governo ter decidido destruir o sistema de formação da administra­ção local, sobretudo quando o país tem desafios tão grandes como modernizar e rejuvenesc­er a administra­ção local, capacitar quadros para as futuras autarquias e criar um funcionári­o da administra­ção local de novo tipo.

As questões financeira­s que motivaram a junção de três institutos não justificam a completa ausência de uma estratégia sobre a formação na administra­ção local, a gratuidade dessa formação, o papel do ensino à distancia. Estamos preparados para projectos sérios?

Não conseguimo­s até agora descortina­r um argumento razoável para o próprio Governo ter decidido destruir o sistema de formação da administra­ção local, sobretudo quando o país tem desafios tão grandes como modernizar e rejuvenesc­er a administra­ção local, capacitar quadros para as futuras autarquias e criar um funcionári­o da administra­ção local de novo tipo

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