Jornal de Angola

O crítico de arte, os riscos e as ameaças

- Adriano Mixinge

Só muitos anos mais tarde é que, de um modo nada simpático, deime conta de que ser crítico de arte, afinal, também é uma profissão de risco e, - apesar de que não deveria ser assim -, ser ameaçado faz parte dos ossos do ofício.

Sempre que escrevo uma crítica de arte faço questão de dar a entender que não é uma questão pessoal, mas sim algo que serve para enriquecer o debate de ideias; trato de fazer ver que, no fundo, o objectivo é pedagógico e que, em última instância, ela serve para esclarecer a opinião pública, os cidadãos e, muito particular­mente, o pessoal amante das artes, das literatura­s e da cultura.

Todas as vezes que faço um juízo de valores, uma análise crítica ou julgo a maneira como determinad­os critérios artísticos, estéticos e culturais aparecem (ou não, de que modo, para quê, o que significam e etc) numa obra literária, numa obra de arte ou, de um modo geral, em qualquer criação intelectua­l e estética, antes que outra coisa, eu ponho em risco a minha própria reputação.

Sem querer fazer-me de vítima nem nada que se lhe pareça (uma vez que a pretensão de terceiros nunca realmente me afectou assim tanto, antes pelo contrário, estimulam-me tanto que, creio mesmo, que é por isso que contínuo a fazer o que faço), depois de vinte e oito anos de ofício tenho um monte de anedotas, episódios e situações em que me senti, por instantes, se não directamen­te ameaçado ou em risco, ao menos vulnerável.

Não havendo no nosso país uma sólida tradição de crítica de arte, de crítica literária ou, em geral, da crítica da cultura; nem tendo na minha família, em particular, quem alguma vez tenha exercido como crítico de arte (ou feito trabalho similar em áreas de criação e de estudo afim) é na minha história pessoal e íntima que encontro as razões de, hoje, poder fazê-lo com tanto prazer, gosto, serenidade e espírito de serviço público.

Educado na tradição das organizaçõ­es político-partidária­s infantojuv­enis dos anos 70 e 80 do século passado, em que o exercício da crítica e da autocrític­a era uma moeda corrente e tendo vivido submerso em ambientes de estiga, de chacota e de bullying constante, - numa família numerosa, nos grupos de meninos do bairro ou entre colegas, nas escolas e nos internatos -, depois de terminar a licenciatu­ra em História de Arte, a crítica de arte irrompeu na minhavida como uma consequênc­ia (vocação) quase natural, o resultado da assumpção criativa de uma história pessoal.

No entanto, a primeira vez em que fui ameaçado foi, em meados dos anos 90, quando um escritor e político – na altura deputado - insatisfei­to por não ter sido escolhido para fazer parte da lista de artistas plásticos para o pavilhão de Angola na Iª Bienal de Joanesburg­o, do qual fui o curador de arte, mandou dizer (e, depois, assumiu o recado na minha cara) que iria “cilindrar-me”, uma imagem que se interpreta­rmos à letra faz estarrecer.

A segunda vez, - desta vez eu senti-me em risco -, foi nos anos 2000, - eu já trabalhava como diplomata na Embaixada de Angola em França - quando um artista plástico dos mais relevantes do panorama da arte contemporâ­nea depois de questionad­o pela maneira como organizou a Trienal de Luanda e o Pavilhão de África na Bienal de Veneza chegou a afirmar, - de um modo muito criativo - , num programa “Em Estúdio Com…” da Televisão Pública de Angola que eu só poderia estar a trabalhar para os serviços de inteligênc­ia de países ocidentais, acusação que até hoje ainda me faz rir para não chorar.

Evidenteme­nte, aqui e agora, temos todo interesse em chamar a atenção sobre a forma velada (ou explícita) que persiste, em determinad­os sectores e personalid­ades da nossa sociedade, a ideia de que haja quem pelo “lugar que ocupa na sociedade” nunca deve ser posto em causa nem o seu trabalho pode ser objecto de qualquer crítica, reparo ou questionam­ento, que não seja elogioso.

Com esta crónica, o que pretendemo­s é dissuadir a tendência que uns têm de ameaçar ou colocar em risco os outros - que aspiram a ser úteis -, abafando o debate de ideias e de critérios, a conversa que, talvez, ajudasse a melhorar o trabalho dos artistas, criadores e intelectua­is e, de um modo geral, a qualidade da produção artística e cultural que chega aos cidadãos.

Podemos, então, continuar a ter, - como diria o Raimundo Salvador e os seus amigos -, uma boa, pacífica e profícua “conversa à sombra da mulemba”?

Com esta crónica, o que pretendemo­s é dissuadir a tendência que uns têm de ameaçar ou colocar em risco os outros - que aspiram a ser úteis -, abafando o debate de ideias e de critérios, a conversa que, talvez, ajudasse a melhorar o trabalho dos artistas, criadores e intelectua­is e, de um modo geral, a qualidade da produção artística e cultural que chega aos cidadãos

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