Jornal de Angola

Corrupção, jacobinism­o e fascismo

- JOÃO MELO

Portugal ou uma parte dele parece em estado de comoção por causa do despacho de um juíz acerca do processo que envolve o antigo primeiro ministro José Sócrates, que viu o número de acusações que pesavam sobre ele serem reduzidas de 31 para apenas seis. O facto de, entre as acusações alijadas, se encontrare­m as de corrupção é motivo do profundo abalo que muitos terão sentido.

Decidi, por isso, socorrer-me deste autêntico drama lusitano, que um dia ainda vai dar um fado, por certo triste, para tecer algumas consideraç­õessobre o tema da corrupção. Alguns poderão considera-las cínicas, mas, para mim, o cinismo pode ser um fator de lucidez.

Desde a queda do Muro de Berlim, o capitalism­o tornouse planetaria­mente vitorioso. Se, do ponto de vista políticoid­eológico, continua a enfrentar alguma oposição, embora perplexa e com visíveis dificuldad­es em encontrar novos caminhos, o seu sucesso como modelo económico é total. Contudo, o facto de o capitalism­o ser o grande vencedor histórico, até agora, não deve impedir a crítica ao seu funcioname­nto.

A primeira questão é, precisamen­te, a eventual relação entre capitalism­o e corrupção. Será o capitalism­o estrutural­mente corrupto? Para procurar responder à pergunta, não é preciso estudar a história da génese desse modelo; talvez baste assistir a um bom western de Hollywood. Dir-me-ão: isso é passado. Há, entretanto, uma frase atribuída a Rockfeller que não me sai da cabeça: “Com excepção do meu primeiro milhão de dólares, sou capaz de explicar toda a minha fortuna!”, terá ele declarado. A boutade é auto-explícita.

Compreende-se, pois, a dificuldad­e “existencia­l” dos militantes furiosos do modelo capitalist­a em explicar os casos de corrupção sem questionar o referido modelo. A “necessidad­e” de consumir obsessivam­ente e de ter sucesso a qualquer preço, para me ater apenas a estes dois exemplos, não teráalguma coisa a ver com a corrupção, em todas as suas formas?

Tranquiliz­em-se, entretanto, os áulicos do capitalism­o: a corrupção, afinal, é comum a todos os tipos de sociedade, pois é própria da natureza humana, como tantas outras práticas. Isso inclui as sociedades historicam­ente existentes, até agora, assim como as futuras. Há muito que perdi a crença na bondade humana e, por maioria de razão, em utopias, quaisquer que elas sejam.

Recordo-me com frequência de um mestre que tive na Universida­de. Dizia ele: as sociedades são engrenagen­s e, como tal, precisam de óleo para funcionar, pois, caso contrário, tornam-se demasiado rígidas; a corrupção é o óleo que as faz funcionar. E acrescenta­va: quando o óleo é demasiado, as engrenagen­s começam a “babar”, como sucede com as sociedades onde a corrupção é endémica (caso de Angola); em tais casos, é preciso fazer rolar umas cabeças.

Por isso, resta-me sorrir quando vejo alguns exultarem com a “eficiência” da luta contra a corrupção nos estados de capitalism­o consolidad­o e desenvolvi­do, sem repararem que, em tais países, essa luta é selectiva e, na prática, visa apenas “umas cabeças”. Por exemplo, quantos envolvidos no escândalo do subprime, nos EUA, foram criminalme­nte punidos?

A verdade é que, sem esquecer as devidas diferenças, haverá sempre muito a fazer, em todo o mundo, para combater a corrupção. Mas isso deve ser feito sem recurso à barbárie, como parecem querer alguns. Do jacobinism­o e do justiciali­smo ao fascismo vai apenas um pequeno passo.

as sociedades são engrenagen­s e, como tal, precisam de óleo para funcionar, pois, caso contrário, tornam-se demasiado rígidas; a corrupção é o óleo que as faz funcionar. E acrescenta­va: quando o óleo é demasiado, as engrenagen­s começam a “babar”, como sucede com as sociedades onde a corrupção é endémica (caso de Angola); em tais casos, é preciso fazer rolar umas cabeças

*Jornalista e escritor

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