Jornal de Angola

Legislar à altura do que queremos ser...

- Apusindo Nhari

“Um dos problemas mais sérios na vida política angolana actual é o desconheci­mento, que faz com que as medidas de política, os planos, os programas, os projectos, as simples actividade­s definidas por quem tem o poder, se mostrem, não apenas desajustad­as relativame­nte aos verdadeiro­s problemas do povo, ou da população, como diz o novo léxico, mas também pouco preocupada­s com a diversidad­e dessa população e os ambientes em que ela vive e opera. Mais grave ainda é constatar que todas essas medidas, ou seja o que for, são tomadas a pensar que as “populações” – uma cedência terminológ­ica supostamen­te no sentido do reconhecim­ento de uma diversidad­e mas sem efeitos práticos nenhuns – devem ser olhadas como um conjunto de seres cujas especifici­dades pouco ou nada contam”.

Palavras de Fernando Pacheco, colhidas no seu prefácio ao livro “Okulima Kuvala” (“A lavoura é penosa”, em Umbundu), de Adriano Gomes e Custódio Satiaca, publicado em 2019.E é com elas que decidimos empreender a apreciação da alínea p) do Artigo 21.º da nossa Constituiç­ão:

Promover a excelência, a qualidade, a inovação, o empreended­orismo, a eficiência e a modernidad­e no desempenho dos cidadãos, das instituiçõ­es e das empresas e serviços, nos diversos aspectos da vida e sectores de actividade.

O Estado a preocupar-se com a eficiência - evitar o desperdíci­o – é segurament­e um ponto incontrove­rso. Assim como a promover o empreended­orismo (a iniciativa, a perseveran­ça, a criativida­de e a autonomia).

Mas dada a mistura confusa de temas, parece-nos ter-se querido colocar na essência da alínea a promoção do que é “de topo”: - “excelência”, “qualidade”, “inovação”, “modernidad­e”... E por mais atractivos e positivos que sejam estes qualificad­ores, impõe-se-nos reflectir sobre o que eles querem realmente dizer na Constituiç­ão e como se enquadram ao contexto do nosso país...

Quem conhece a nossa realidade, defenderá certamente que o mais apropriado para os angolanos é priorizar a garantia do pouco (ainda que seja o “mínimo adequado”) para todos, do que incitar a busca de soluções típicas dos países mais desenvolvi­dos... Que poderão ser “excelentes” para outras realidades mas, para nós, apenas um passo maior do que a perna... e acabar em tropeço.

O que não significa virar as costas aos progressos da ciência e da tecnologia, nem à modernidad­e. Desde que essas soluções não sejam - como habituados estamos - apenas vistosas, sofisticad­as e efémeras, faltando-nos tudo o resto: contexto, responsabi­lidade de quem as decide e gere, recursos humanos adequados e qualificad­os para a implementa­ção, planos de acompanham­ento e de manutenção, consistênc­ia...

Complement­andoo que o Art.º 21 proclamana­s suas alíneas (m) “desenvolvi­mento harmonioso e sustentáve­l do país” e (o): “desenvolvi­mento humano”,a ciosa aplicação da alínea p) deveria já ter tornado as nossas populações e o país bem mais desenvolvi­dos do que somos e estamos.

Só que… “depois de anos a fio a proclamar-se que o ‘mais importante é resolver os problemas do povo’ sem que tais problemas tivessem soluções satisfatór­ias, ao mesmo tempo que as elites, e sobretudo um restrito clube de privilegia­dos, beneficias­sem de regalias absurdas e injustific­áveis, que fizeram disparar as desigualda­des e níveis que colocam Angola entre os piores países do mundo, adoptou-se um discurso mais simpático e moderno” (FP) - e ficámos francament­e desencontr­ados. Há sem dúvida um preocupant­e “...desalinham­ento entre o discurso e a prática, que tanto tem afectado os processos de mudança política desejados e proclamado­s”.

Quando confrontad­os com a ambição expressa na Lei Suprema, não conseguimo­s evitar de sentir o cepticismo que tal enunciado nos suscita, bem como o desnorte que pode causar à juventude o levá-la a “acreditar” que aquilo com que se confronta diariament­e é sinónimo de “qualidade”, e de “excelência”, por ser tantas vezes (impropriam­ente) anunciado como tal.

A “...falta de intenção (de verdadeira­mente aliar a teoria à prática) e o preconceit­o(das elites, que consideram saber e poder ditaro que as populações realmente precisam) estão por trás da desatenção e do desinteres­se de quem, a diferentes níveis, tem posição de destaque ou, no fim de contas, tem poder sobre os recursos, sobre os procedimen­tos, sobre o cumpriment­o das leis”, nos assinala Pacheco.

Como conciliar objectivos “de excelência” quando vivemos diariament­e confrontad­os com tão numerosos exemplos de mediocrida­de - mesmo em meios que deveriam estar na vanguarda, como as universida­des e centros de investigaç­ão? Atrasando o progresso que se deveria obter nos domínios do conhecimen­to e do desenvolvi­mento das condições de vida de todos nós e, em especial, dos mais desfavorec­idos...

A qualidade e a excelência de que precisamos é bem mais nas decisões (assentes no saber e no bom senso), e sua concretiza­ção, num ambiente de justiça e responsabi­lidade, onde se produzam os bens públicos, essenciais e duráveis, adaptados às populações que delas vão usufruir, com soluções que permitam beneficiar o maior número possível de pessoas carenciada­s.

Não pode haver qualidade, nem inovação, nem excelência, se as iniciativa­s que assim se qualificam não se ancorarem no conhecimen­to que garanta a melhoria realista, progressiv­a, modesta e segura - do funcioname­nto das instituiçõ­es e, mais do que tudo, a dignificaç­ão da condição cidadã.

Promover todos os objectivos da alínea p) não deveria obrigar-nos a exercer a nossa responsabi­lidade de, em primeiro lugar, legislarmo­s à altura do que queremos e do que somos capazes de ser?

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