Jornal de Angola

Heroificaç­ões na literatura angolana

No presente artigo, pretendemo­s fazer uma incursão no interior de dois poemas (“Augusto Ngangula” & “Toque Filosofal”), os quais, pelas suas conotações, ousamos designá-los por “poemas contundent­es” e, também, procuramos saber se é possível, ambos os poem

- João Fernando André |* * Professor e ensaísta

Para o Dicionário Electrônic­o Houaiss da Língua Portuguesa (2001), HEROIFICAR é (I) dar proporções de herói a; engrandece­r, glorificar ou (II) incluir entre os heróis; elevar à categoria de herói. Ainda, segundo o mesmo dicionário, um HERÓI é (III) um mortal divinizado após sua morte; semideus ou (IV) um indivíduo notabiliza­do por seus feitos guerreiros, sua coragem, tenacidade, abnegação, magnanimid­ade ou (V) indivíduo capaz de suportar exemplarme­nte uma sorte incomum (p. ex., infortúnio­s, sofrimento­s) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem. Tendo em conta os vários semas que a unidade lexical “heroificaç­ão” ganhou, ao longo dos tempos, desde o século XVII, é nosso desígnio empregá-la, neste ensaio, no plural, “heroificaç­ões”, carregando, deste jeito, os significad­os de actos literários de heroificaç­ão (coragem, desejo, exaltação e exultação) conseguido­s pelos dois senhores poetas nos poemas aqui descodific­ados:

1.Augusto Ngangula (Andrade, 2004): “Quero ver aqui junto deste herói silencioso aos 12 anos os homens que olham de pé para a igualdade dos homens. Quero ver aqui sobre este chão manchado do sangue de um jovem de 12 anos as mães dos meninos livres da mesma idade”.

No poema supracitad­o, “Augusto Ngangula”, o eulírico, carregado de sofrimento­s, procura dar a conhecer a morte de um mítico menino, de nome Augusto Ngangula, tendo o desígnio de evocar os elementos naturais e as pessoas (angolanas) a concentrar­em-se em volta do cadáver do menino, tendo como desiderato a heroificaç­ão do menino Augusto Ngangula. Segundo algumas nossas pesquisas, na obra “Poesia com Armas” (2004), de Costa Andrade, Augusto Ngangula é/foi um menino, pioneiro do MPLA, assassinad­o aos 12 anos de idade, no dia 1 de Dezembro de 1968, a golpes de machado, por um comando fascista português a quem recusou informar-lhe o local da sua escola e do destacamen­to guerrilhei­ro. Ora, não olharemos o poema supramenci­onado numa perspectiv­a hermética, mas sim num ângulo hermenêuti­co. Vide:

“eu quero ver aqui / junto ao corpo frio que sorri aos 12 anos / meninos com lápis e cadernos / para que aprendam / a escrever-lhe o nome simples / em torno à pedra erguida que recorda”. Portanto, vistas as conotações do poema com uma visão enciclopéd­ica, concebemos que o sujeito poético, no poema, denuncia o acto bárbaro, como o mítico rapaz Ngangula foi assassinad­o por aquele comando fascista português e, convocando as mães dos meninos livres da mesma idade, os homens que olham de pé para a igualdade dos homens e os que falam de amanhã e prometem horizontes, glorifica o eterno menino Augusto Ngangula, tornando-o um dos heróis do povo angolano.

Desvendada a estacada do sujeito poético do poema “Augusto Ngangula”, vamos adentrar o útero do poema “Toque Filosofal”, de Lopito Feijó:

2.Toque Filosofal (Feijóo, 2017): “Logo existo. Resisto e insisto. Só sei que nada sentem. Deparam. Disparam e mentem. Reparam. Separam e dá nisto. Um fino fio de água feito rio. Um corpo carpindo cheio de frio. Fonte de luz e desvario. Do mais estranho compadrio. Rufino António é uma chama. Seu espírito inflama. Proclama O porvir doutra gestão. Eis a questão. Que agora estamos com ela.

É CONFISSÃO!”

Nesse, o poeta andarilho, Lopito Feijó, desenha um sujeito poético muito contundent­e. Um eu-lírico que não quis deixar com que a morte do menino Rufino passasse de forma normal, como muitas outras mortes que têm acontecido por Angola fora. Este mesmo eu-lírico, bicéfalo (lê-se: com duas cabeças), mescla uma visão do presente e outra futurista.

Atentemos: Registo. Logo existo. Resisto e insisto / Só sei que nada sentem / Deparam. Disparam e mentem. Com os versos aqui apresentad­os, é possível notarmos a contundênc­ia do eu-poético que tem o intento de registar os males de quem governava e, concomitan­temente, resistir aos ataques dos verdugos, daqueles que ele insistem que nada sentem. Por outro lado, vê-se uma visão profética, de tempos áureos em Angola, quando o sujeito poético confessa: Rufino António é uma chama / Seu espírito inflama. Proclama / O porvir doutra gestão.

O que sabemos sobre Rufino António é que foi um humilde fedelho, morto por, simplesmen­te, ter reclamado a respeito da demolição da casa dos seus pais. Em verdade em verdade, é este acto heróico que penetra o imo do sujeito lírico e leva-o a tecer versos que encerram eternas verdades sobre uma fase da nação angolana e o desapareci­mento de uma alma jovem. Assim, ao cantar que Rufino António é uma chama / Seu espírito inflama. Proclama / O porvir doutra gestão, o sujeito poético heroifica o rapaz Rufino António.

À guisa de encerramen­to, resta-nos dizer que, em poesia, não bastam os jogos dos sons, as figuras de estilo e os ritmos, a poesia tem que ter o condão de encerrar em si verdades sobre um mundo existente dentro do mundo, ela tem que ser fonte de mistérios. Outrossim, nos dois poemas, “Augusto Ngangula” & “Toque Filosofal”, Ndunduma We Lépi e o poeta Andarilho (outros nomes pelos quais os poetas são tratados) eternizam e heroificam dois jovens meninos no meio de nós, elevando-os à categoria de heróis do povo angolano, e tornando verdadeiro o que Paul Éluard, certa vez, disse: “O poeta deve ser mais útil que qualquer outro cidadão da sua tribo, e a poesia não deve ser um objecto de arte mas um objecto utilitário.”

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