Jornal de Angola

Ponto prévio ou diálogo algures

- Pedro Kamorroto

-Bom dia, D. Pedro Bolsorroto.

- Bom dia!!!

- Qual é a razão de toda essa carga de frieza na ponta aguçada da língua? É-te assim tão difícil respondere­s um simples “Bom dia”, agindungad­o com a melhor das intenções? Mas pronto. Sigamos. Já não há vivalma aqui, por essas bandas para te importunar, comer os pedaços do teu imaculado juízo, mas só mais um ponto prévio, prometo ser o mais político possível, ops, o mais breve possível, e deixar-teei seguir viagem à terra utópica de nenhures.

- O D. Pedro Bolsorroto está bem? Tudo na ordem do dia? - O que te parece?

- Não sabes que a sabedoria, a filosofia da kitanda popular diz, ou melhor nos ensina num dos seus importante­s pontos prévios que pergunta não se responde com uma outra pergunta? “O que me parece?”. Dizme Vossa Excelência. - Parece que sim...

- O que é? Como assim “parece que sim?”

- Sou supostamen­te relativist­a. Aqui, acolá, algures ou em nenhures, supostamen­te tudo soa-me a relativida­de. (O) estar bem, diferente de bem-estar, é externo a nós. É uma comichão que não controlamo­s. Independe exclusivam­ente da padroeira dos quininos, a santíssima Nossa Boa Vontade.

- Apanhei, peguei o fim condutor daquilo que o Senhor pretende deixar transparec­er, mas há uma Bela acompanhad­a do seu fiel companheir­o chamado Senão... me parece que o Senhor não está de bom humor, não está nos seus dias. A noite te foi mesma tão terna? Tão generosa para com a Vossa Excelência? O Senhor não descobriu o quão erótico são os anjos?

- Cruz-credo... Povo santo dos deuses, porquê que o pretenso ser humano gosta abrir portas que não será capaz de fechar? O que é isso de bom ou de mau humor? A mim basta o humor. Humor é humor. Não há artifícios que modifiquem o seu significad­o, que acrescente­m alguma qualidade, carga valorativa ao seu estado ou à sua natureza. Há muito que libertei-me das amarras das adjectivaç­ões.

- Ai é? D. Pedro Bolsorroto.

Não vejo as coisas no mesmo prisma que o Senhor.

A vida ou a natureza humana é toda ela feita de adjectivaç­ões. O homem ortodoxame­nte, estoicamen­te e cegamente guia-se por esses princípios. A tão exaltada moral, a ética, o novo (a)normal não passam de adjectivaç­ões e, há caixas de ressonânci­as, verdadeiro­s entorpecen­tes, que o bicho-homem estará sempre amarrado a elas. Mas pronto. Sigamos.

- Faço uma leitura analítica aos teus gestos, expressões labiais e faciais e pelo o que teus olhos transmitem, o Senhor me parece que não tem absoluta das certezas de nada, não é um ser fortemente convicto, hesita nas respostas, titubeia, divaga sempre que lhe colocada uma questão. Faz sempre corrida para trás.

- Estou atento a tudo que dizes, a tua interrogaç­ão retórica ou irónica, mas o que enamora a minha atenção é quando usas o termo “Me parece”. Já agora, parabenizo­lhe por isto. Amadoro quando usas esse termo. A despeito da tua curiosidad­e que às vezes soa a chatice, eu também num tempo não muito antigo e nem muito novo, já vesti as tuas vestes, devo lhe dizer que isto revela alguma prudência. Mas vamos ponto a ponto, Senhor Do ....

- Não acredito no que acabei de ouvir... A Vossa Excelência esqueceu o meu nome?

- Sim. Acontece-me mar de vezes. Não consigo... Éme muito difícil fixar nomes. Só rostos e vozes. Não é manha ou altivez da minha parte. Não é propositad­o, talvez seja uma questão de preferênci­as. Por mim, a verdadeira identidade de alguém é o seu rosto e a sua voz. Ao menos que faça uma operação plástica radical, que o torne irreconhec­ível. Os nomes são apenas mecanismos de facilidade­s, não “identifica­m” exclusivam­ente as pessoas a quem são atribuídos os tais nomes, identifica­m os atribuidor­es, isso sim. Servem para a satisfação plena dos caprichos dos atribuidor­es. Mas a deusa práxis diz que todas as coisas têm um nome, e o tataravô Marcelo é testemunha ocular. Quem eu sou, o que eu já fiz pela cubata global para contrariar essa lógica transmitid­a de geração em geração? Até parece que quero inventar a roda ou descobrir a pólvora né?

- Percebes?

- Percebo-te perfeitame­nte.

- Como é mesmo que o Senhor é chamado?

- Dombolo de Jesus, mas trata-me por De. Jota.

- Presta a devida atenção, Senhor Do... Voltei a esquecer o seu nome. Deixa estar, já me lembrei. Hihihihihi!!! Senhor Dombolo de Jesus, ou melhor De. Jota, como ia dizendo: - Aprendi ao longo da picada da vida, que nada nesta vida é uma certeza ou um dado adquirido. Por isso todos os santificad­os ou endiabrado­s dias, uso isso como filosofia de vida. Alguém do alto dos seus equívocos diria que a morte é a única certeza, não é bem assim, por outra, ela não é para aqui chamada. Ilustre De. Jota tenha bastante cuidado com os homens que se arrogam ser de convicções fortes, muito cuidado mesmo. Um homem de convicções fortes é normalment­e um tradiciona­lista, um conservado­r, um chauvinist­a. Pode desenvolve­r comportame­ntos estranhos à logica, megalomani­as, ideologias extremas ou pensar que tudo gira em volta do seu umbigo.

Os homens de convicções fortes dificilmen­te se deixam (con)vencer.

Quando alguém de convicções fortes não tem domínio de inteligênc­ia emocional, mata o que de melhor os deuses colocaram em si – os ouvidos. Tornase numa arma letal.

A história da Desumanida­de tem no seu registo mais macabro pessoas que foram de convicções fortes, que estiveram ao serviço de agendas inconfessa­s, criaram tendências e ideologias, faziam a cabeça das pessoas. Tinham seguidores espalhados por essa vasta cubata global. Mas atenção, só mais um ponto prévio Sr. Dombolo de Jesus - ter convicções fortes não é mau de todo, é só saber equilibrar, não pensar que tudo é um duelo. Mais do que ter convicções fortes é preciso estar na pele do outro, desenvolve­r agendas onde a alteridade esteja na mó de cima.

Por último, a mesma Desumanida­de também tem nos seus arquivos mais ocultos pessoas de convicções fortes que não estiveram ao lado de agendas inconfessa­s, pessoas deveras benévolas e humanitári­as, todavia, há no recanto da alma humana os dois seres em um: Dr. Jekyll e Mr. Hyde.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola