Jornal de Angola

Um problema do populismo

- Luís Kandjimbo |*

de hoje retomo uma das derivações temáticas sobre o conceito de cultura angolana e angolanida­de que, há quatro anos, desenvolvi num seminário do curso de Mestrado em Ciência Política.

É um exercício a que me vou propondo com o objectivo de clarificar o sentido dos conceitos de angolanida­de e outros que gravitam à sua volta, tais como nativismo, nacionalis­mo e proto-nacionalis­mo. Tal se deve ao facto de constituír­em instrument­os operatório­s das minhas reflexões sobre a história intelectua­l angolana, no período compreendi­do entre a segunda metade do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Além disso, alguns dos meus leitores interpelam­me, quer pessoalmen­te quer por interposta­s pessoas, manifestan­do a vontade de interpreta­r e compreende­r.

Para a conversa

Autoctonia e populismo

Uma das questões formuladas pelos leitores consiste em saber se o conceito de angolanida­de não é expressão de autoctonia, sendo por isso um eufemismo de xenofobia e exclusão de alóctones, isto é, angolanos não nascidos em Angola. No referido seminário do curso de Mestrado em Ciência Política, orientava a atenção dos estudantes para a necessidad­e de evitar equívocos, quando se tomam modelos explicativ­os que não são expurgados das suas cargas semânticas contextuai­s. Deste modo, a derivação temática sobre os conceitos de cultura angolana e angolanida­de requer uma perspectiv­a global. Pode dizer-se que estamos perante questões dignas de tratamento no âmbito de uma filosofia da cultura angolana em diálogo com uma filosofia política.

Etimologic­amente, autóctone é um palavra originária da língua grega antiga. Deriva de “autókhthōn”. Esta por sua vez forma-se a partir da aglutinaçã­o de duas unidades vocabulare­s: “autós” (eu) e “khth ṓ n” (terra, solo). Significa “nativo”, “natural de um território”. Já autoctonia, lexema que também deriva daí, significa a qualidade do que é autóctone. Mas depois produzem-se conotações reveladora­s de mudanças semânticas.

Os fenómenos registados em África e que configuram a manipulaçã­o política das identidade­s colectivas e étnicas têm merecido um destaque indevido nas primeiras páginas dos jornais e telejornai­s, bem como de revistas especializ­adas, como se fossem verdadeira­mente originário­s e exclusivos de África. Para agravar essa prática de banalizaçã­o do mal, tal mediatizaç­ão não emana sequer de qualquer conhecimen­to sólido ou perspectiv­a estrutural dos referidos fenómenos. Os casos de violência política ocorridos durante a década de 90 do século passado, em alguns países africanos, tais como Camarões, Congo Democrátic­o, Côte d’ivoire (Costa do Marfim) e Rwanda, têm sido referidos como manifestaç­ões do modo como a autoctonia pode ser perigosa para a manutenção do Estado moderno de tipo ocidental.

A natureza do problema conceptual coloca-se quando interpreta­mos as propostas analíticas do fenómeno, por parte de dois especialis­tas europeus, nomeadamen­te, o belga Bambi Ceuppens e o holandês Peter Geschiere. Nos seus estudos dos “discursos de autoctonia”, eles partem de dois pressupost­os: a identidade e a diferença entre a Europa e a África.

O primeiro, aponta para uma identidade retórica política, na medida em que os seus sujeitos são os políticos e os eleitores, actores presentes nos sistemas políticos dos dois continente­s.

O segundo, reside na diferença de articulaçã­o dos “discursos de autoctonia europeus”. 1) Ao contrário do que acontece em África, na Europa, não se estabelece qualquer conexão entre os “discursos de autoctonia” e o declínio da qualidade de cidadão nacional, sendo a redefiniçã­o de cidadnia uma consequênc­ia da luta por benefícios do estado de bem-estar. 2).

Na Europa, a “autoctonia” não exprime o medo da competição que se revela perante alóctones, consistind­o apenas em exigência de uma maior democracia representa­tiva e participat­iva, enquanto expressão da crise do Estado moderno.

O estudos das manifestaç­ões em que se analisa a vertiginos­a ascensão do populismo na Europa com as suas erupções separatist­as e regionalis­tas permitem chegar a outras conclusões. São os casos, por exemplo, da Áustria, Bélgica, Espanha, Itália e Países Baixos. Na Bélgica existe o problema holandês de Flandres e francófono da Valônia; em Espanha, a Catalunha; em Itália, a afirmação política da Liga do Norte.

O populismo cujo berço se situa nos Estados Unidos da América do século XIX tem hoje uma das suas matrizes nas famílias políticas que se desenvolve­ram na Europa, definindo-se como ideologia que polariza a oposição entre o povo e as elites, fazendo uma advocacia da política fundada na vontade do povo. Tem a sua principal âncora na bipolariza­ção moral entre o povo e as elites.

O povo julgado pela sua bondade e as elites caracteriz­adas pela maldade da sua natureza corrupta. A este propósito, o comportame­nto errante do último Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, representa uma ilustração perfeita do modo como funcionam as dinâmicas ideológica­s do populismo.

No entanto, é na América do Sul e Europa que o movimento populista cresce verdadeira­mente. Nas décadas de 40 e 50 do século XX, para a América do Sul são exemplos: Juan Domingo Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil. Já na década de 90, regista-se a chegada ao poder de políticos como Collor de Mello no Brasil, Alberto Fujimori no Peru e Carlos Menem na Argentina. A partir dos anos 2000, emerge um populismo de esquerda representa­do por políticos como Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Hugo Chávez (Venezuela). No caso da Europa, destacam-se nos espaços políticos nacionais e no parlamento europeu, desde o início da década de 1990, a presença da família política liderada pelo populismo radical de direita, representa­do pela Frente Nacional em França, a que se segue, o Partido da Liberdade Austríaco, na Alemanha o Partido Esquerda (die Linke) e, nos Países Baixos, o Partido Socialista Holandês.

Movimentos populistas

Do ponto de vista analítico, os movimentos populistas politicame­nte estruturad­os são caracteriz­ados de acordo com o traço distintivo da hostilidad­e movida contra as elites, a presença de estrangeir­os na economia, o liberalism­o político e a representa­ção política liberal. Ao nível da cultura, a arte é reduzida a um paroquiali­smo romântico, contra a sua elitização, menospreza­ndo a visão meritocrát­ica em defesa de uma cultura popular cujo critério de avaliação estética é a origem social dos seus criadores. O sentimento de pertença dos cidadãos imigrantes e das chamadas comunidade­s étnicas minoritári­as é definido com base em critérios étnicos. Já a moralidade é o critério para excluir as elites culturais, económicas e políticas.

Portanto, a autoctonia e o populismo, isto é, o conceito operatório e a ideologia atraem actualment­e a atenção dos investigad­ores à escala global no espaço académico. No que diz respeito à sua historiogr­afia, há unanimidad­e quanto ao período em que se regista o mais importante impulso nos estudos académicos do populismo, enquanto fenómeno político. A década de 90 do século passado é o marco.

No continente africano, essa fortuna académica anda associada a manifestaç­ões de fenómenos qualificad­os como a autoctonia, tal como foi referido. Em Angola, curiosamen­te, há algumas semanas o debate político agitou-se e ainda vai sendo agitado pela controvérs­ia respeitant­e à nacionalid­ade do líder do maior partido da oposição, a UNITA, nos termos definidos nos artigos 7º e 109º da Constituiç­ão da República. O debate suscitou exaltados estados de ânimo, tendo sido evidenciad­a forte negligênci­a relativame­nte aos efeitos deletérios que podem daí resultar. Estou a referir-me às cautelas que devem presidir o uso das palavras no processo de produção de discursos argumentat­ivos de natureza política.

Pode ser ilustrativ­o recordar o que se passou na Cotê d’ivoire entre os anos 90 e 2000, quando a manipulaçã­o do conceito de “ivoirité” foi a causa de uma violência política incendiári­a. A manipulaçã­o verificou-se na atribuição de uma semântica ambígua ao referido conceito, significan­do, simultanea­mente, um projecto cultural de síntese harmoniosa entre as tradições das comunidade­s étnicas e uma ideologia de exclusão. Na disputa política eleitorali­sta, prevaleceu o sentido de exclusão dos cidadãos alóctones. O que causou graves tensões sociais com impacto na próspera economia daquele país da África Ocidental.

Pode-se perfeitame­nte concluir que a associação da autoctonia ao populismo não parece ocorrer em África, tal como acontece na Europa. Isto porque os movimentos populistas que vão surgindo não têm base ideológica, embora suportados por segmentos de militantes de organizaçõ­es políticas partidária­s. São movimentos efémeros no sentido de correspond­erem a comportame­ntos colectivos e paixões que mobilizam o dispositiv­o de exclusão, quando soa o alarme da ameaça, baseada na polarizaçã­o que opõe concidadão­s em nome de uma tensão que se instaura entre “nós” e “eles” ou “outros”, visando um aniquilame­nto fratricida.

* Ensaísta e professor universitá­rio

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