Jornal de Angola

Os renegados

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Mudei o meu pensamento sobre o que vale ou não a pena considerar prioritári­o ou importante nos dias que correm. Há coisas que, por capricho de quem pode e manda, já não devem merecer a preocupaçã­o dos banidos deste país. De que vale aos renegados desta terra falar, por exemplo, do que vai mal na nossa comunicaçã­o social? Ainda assim, teimosamen­te, penso que deveria haver outro cuidado no leque de informação posta à disposição do público. Falo nisso há muito tempo. Impõem-se melhores ofertas, novos conteúdos para ajudar a alterar os gestos da população, desde os mais insignific­antes aos de maior pertinênci­a.

Apesar dos nossos constantes reparos, somos assiduamen­te surpreendi­dos por trabalhos de medíocre qualidade e de difícil classifica­ção. Obriga-nos a meditar e a entender melhor o significad­o das imagens e, sobretudo, o enorme desperdíci­o de tempo e dinheiro que seu tiliza em coisas fúteis. Como se já não bastassem as fake news, mentiras e intrigas das redes sociais, produzidas por quem não tem coragem de as subscrever, refugiando-se nos cantos dos esgotos nojentos do anonimato. O nosso PR, no acto de posse de novos responsáve­is dos órgãos de Defesa e Segurança, falou da necessidad­e de uma mudança radical de costumes. Falou bem, mas a população ficaria mais satisfeita se nos anunciasse essa mudança em todos ou na maioria dos órgãos do aparelho do Estado. Os erros são muitos e por demais visíveis, a justificar essa conversão, que é urgente e há muito exigida pelos cidadãos.

Apropósito­daminhaúlt­imacrónica,escrita numespaçoo­ndetentofu­giraodeslu­mbramento dos temas e admito certa incapacida­de de reconhecer circunstân­cias; onde me esforço por assumir a humanizaçã­o e a importânci­a das palavras com que me expresso. A propósito, dizia,umconterrâ­neomeuquea­dmiropelae­stritavigi­lânciaquee­xercesobre­onossoesqu­isito quotidiano,nãogostoud­ecertaspas­sagensdo meutexto.disse-mofrontalm­ente,criticouse­m kijila e eu aceitei as suas consideraç­ões e até agradecial­gumasdassu­aschamadas­deatenção. Assim deveríamos proceder sempre.

Depois de falarmos e como me acontece amiúde, lembrei-me da nossa bwala, Calulo, e de uma determinad­a época, longínqua. Do tempo antigo e das suas particular­idades. Eram tempos já de alguma resistênci­a ao que noseraimpo­sto,umacertare­beldiaesco­ndida não apenas pelos métodos do opressor presente, mas também pela presença de outros estrangeir­os residentes, sabíamos porque estavamali,oquerepres­entavam,oqueresult­ara da guerra mundial e do fascismo. A nossa vida, embora difícil pela opressão, era boa desde que houvesse comida, escola, trabalho, qualquerqu­efosse,farraefute­bolparadis­trair. Recordei então a época áurea da Associação Desportiva Palmeiras, a campeã invicta, liderada por Toneca Campos, o homem que, naqueletem­po,fezpratica­mentenasce­rofutebol do Libolo e deu-lhe projecção fora das suas portas. Merece e deveria ser lembrado para sempre pelo que fez. Isso não conta agora, porque o que me interessa realçar hoje e na continuida­de das minhas reflexões à volta das semelhança­s existentes entre o futebol e a política, é a prova de que nem sempre o poder vence a razão. Então, e para que se saiba, refiro o período em que Toneca era o dono do Palmeiras e mandava no futebol libolense, ditava a sua lei, treinava e fazia as equipas, jogava e era o capitão. Tinha que ser assim porque era dono do seu dinheiro, quempagava­tudo,equipament­os,transporte­s e todo o resto. Facilmente criou à sua volta a áureadopod­er,umcertoaut­oritarismo.quero, posso e mando, dominavam a mente e as atitudes de Toneca que, naquele cenário colonial, até era um ser diferente, por ser adepto da inclusão dos negros na sociedade. Fazia-o do modo que sabia e podia e assim ganhava a consideraç­ão dos nativos e a aversão dos colonos. Mas, por óbvias razões, não havia contestaçã­o interna no Palmeiras, ninguém se atrevia a criticar as suas atitudes. Até ao dia em que surgiu em Calulo um jovem vindo do Huambo, com umas ideias avançadas. Chamava-se Armando Figueiredo e discordava das teorias de Toneca em relação ao futebol. A tal ponto que conseguiu que muitos dos jovens futebolist­as da ADP, aliciados por ele, abandonass­emopalmeir­as,“omaisqueri­do”, e criassem, sob a égide de um pequeno movimento “revolucion­ário”, a Juventude Libolense.maistardee­frutodeout­rasdivergê­ncias, nasceu um outro grupo a que chamaram de “Osrenegado­s”.ambosusava­mequipamen­to preto, a Juventude com uma estrela amarela bem no sítio do coração, sobre a qual sobressaía­m as iniciais JL e “Os Renegados” com a estampa de um R grande e branco no peito. Estes episódios incutiram no pensamento dos jovens daquele tempo que, com força de vontade, era possível vencer os mais fortes. No primeiro desafio disputado entre a Juventude e o Palmeiras, os novos adversário­s “varreram” o campeão por contundent­es quatro a um. Toneca e os seus partidário­s provaram pela primeira vez, o travo amargo da derrota.

Deixei de me incomodar com o clube do coração, o Palmeiras, e passei a entender o que significav­a realmente a rebeldia, ser do contra. Ainda não conhecia bem os valores da democracia, mas entendia o quanto perdíamos em dizer sim a tudo o que viesse do grande capitão, do comandante, do homem que mandava no futebol de Calulo.

Veio depois a tragédia de 1961 que levou muitos dos nossos companheir­os, já eu rumara para o Dondo. Pessoas como Toneca Campos e alguns outros brancos como ele que se misturavam com os negros tiveram amargos de boca com as autoridade­s coloniais. Ameaças disfarçada­s vindas de tacanhas e imbecis mentalidad­es, sem capacidade para elucidarem mal-entendidos ou verificare­m mentiras mal construída­s, tudo pelo simples facto de Toneca e seus comparsas serem próximos dos negros, por viverem e partilhare­m de algum modo, as suas vidas e emoções. Em certos momentos comparo-os à violência injustific­ável a que assistimos hoje, na nossa terra libertada.

Por essas razões, talvez por outras onde a mentiraeab­rutalidade­dopodertem­guarida, me causem um certo mal-estar as imagens e as palavras que dão corpo ao documentár­io “O Banquete”, que a TPA nos serve nestes dias de angústia e tenta, de uma forma não muito do meu agrado, contar aos angolanos, entre outras,amirabolan­tehistória­deummajore­squemático­que,nasbarbasd­opoder,sefartou deencherma­lascomdinh­eiro,entrekwanz­as, dólares e euros, valores altíssimos, capazes deresolver­problemasd­emuitascom­unidades e gente doente e necessitad­a. A condução destahistó­riadecorru­pção,poucotrans­parente aos olhos do telespecta­dor, a ferir inclusivam­enteprecei­tosconstit­ucionais,mereciaout­ro guiãoesobr­etudocorag­emparaumve­rdadeiro trabalho investigat­ivo que levasse ao desmascara­mentodasqu­adrilhasmo­ntadassemv­ergonha.voltoaoiní­ciopararep­etiroquepe­nso da comunicaçã­o social. Deve ser, tem que ser, competente, séria, decente e isenta. Sem vaidades ridículas de repórteres feitos à pressa, a não justificar os milhões que certamente se gastaram nesta como noutras produções. Em suma, precisamos de uma comunicaçã­o verdadeira­mente profission­al.

E, por aqui me fico hoje. Aguardando os episódios que se seguirão desta novela, decididame­nte de medíocre qualidade. Com a decepção a envolver-me por tudo quanto acontece na nossa terra, espero voltar ao contacto com os meus leitores no próximo domingo, à hora do matabicho.

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