Amigas de circunstância com uma história comum
Jovens da mesma faixa etária, além dos 40 anos, recordam a infância comum enquanto filhas de vítimas de conflitos políticos e a dimensão do perdão e da reconciliação no processo que vai culminar com a entrega das ossadas às famílias
Xissole e Eunice têm uma história em comum. Perderam os pais em consequência dos trágicos acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Uma é órfã de Saidy Mingas e outra de Nito Alves. Jovens da mesma faixa etária, além dos 40 anos, recordam a infância enquanto filhas de vítimas de conflitos políticos e falam da dimensão do perdão e da reconciliação no processo que vai culminar com a entrega das ossadas às famílias.
A história de Xisolla e de Eunice tem algo comum que, de tão trágico nas vidas pessoais, era tabu entre políticos, famílias, em particular, e entre os angolanos, em geral, há 44 anos.
Órfãs de pais assassinados nas mesmas circunstâncias, as jovens viveram durante quatro décadas à sombra da história do pais que ninguém ousava falar ou assumir publicamente.
Xisolla é filha de Saydi Vieira Dias Mingas e Eunice filha de “Nito” Alves Bernardo Baptista. Essa qualidade pessoal de filhas de vítimas dos acontecimentos do “27 de Maio de 1977” colocou as duas jovens numa circunstância em que a empatia, entre ambas, era natural.
Xisolla e Eunice conheceram-se dias antes das cerimónias oficiais de homenagem às vítimas dos conflitos políticos e alicerçaram uma amizade que prometem edificar para sempre.
“A partir do momento em que olhamos uma para outra é que percebemos que fomos tratadas da mesma maneira, independentemente de nos terem dito que estávamos em lados opostos, percebemos que a nossa infância foi a mesma. Além de sermos duas órfãs, somos filhas de Angola”, referiu.
Xisolla Madeira Vieira Dias Mingas é jurista e docente universitária enquanto Eunice Alves Baptista Bernardo é empreendedora. As duas preferiram uma cerimónia privada para receber certificados de homenagem e certidões de óbito dos pais.
A filha de Saydi Mingas contou que o encontro com a filha de Nito Alves foi de grande emoção porque ambas habituaram-se a não pensar em “certas coisas, e certos nomes” tinham um efeito nelas, tudo fruto do que aconteceu aos seus pais. Xisolla indicou que o primo José Lutuima, filho do tio José Mingas, também vítima do “27 de Maio”, sofre o mesmo.
Hoje, com mais de 40 anos, Xisolla lembra que não foi fácil, quando criança, perguntar pelo pai e perceber que essa questão provocava dor e mágoa nos familiares.
“Então, rapidamente, habituei-me a não fazer perguntas sobre o meu pai”, confessou, acrescentando que “o 27 de Maio não esteve encoberto apenas pelas autoridades, todas as casas de famílias angolanas têm uma história deste dia e todas devem preferir esquecer isso, não falar, não rebuscar nem remexer naquilo que causa dor.”
Xisolla recordou ainda que, o pai, militar regressado do exílio, a primeira coisa que fez foi mudar o nome para Saydi Vieira Dias Mingas, diferente daquele que foi registado pelos pais.
A jovem lembrou que há uma vertente na personalidade do pai Saydi Mingas que as pessoas nunca se sentiram muito à vontade para falar. “Falam do amigo, do irmão e do homem de família, mas não falam do intelectual, político e de Saydi Mingas militar”, disse. Xisolla espera que, quando todo esse processo terminar, os historiadores comecem a escrever sobre o “27 de Maio” e “um dia cheguemos a saber o quê é que aconteceu e porquê aconteceu.”
A jovem, que viveu anos no exterior do país a formar-se, segundo ela, numa altura em que o país não oferecia segurança nem condições, negou que algum dia tivesse sido pressionada a não participar nas cerimónias de homenagem às vítimas dos conflitos políticos organizadas pelo Estado. “Não sou política. Sou académica e vivo à parte daquilo que são as conveniências políticas”, referiu.
Xisolla, questionada se, depois destes anos, a reconciliação é possível, afirmou que: “Não sou militar, nunca estive na guerra, logo não preciso de me reconciliar com ninguém, mas gostei do pedido de desculpas e de perdão feito pelo Presidente da República em nome do Estado angolano”, afirmou.
“O 27 de Maio não esteve encoberto apenas pelas autoridades, todas as casas de famílias angolanas têm uma história deste dia e todas devem preferir esquecer isso, não falar, não rebuscar nem remexer naquilo que causa dor.”