Eleger (autarquicamente) é só uma pequena parte…
… mais do que olhar para as situações do cidadão e do súbdito de uma forma binária, seria melhor vê-las como parte de um continuum Rajeev Bhargava
Entre ser-se súbdito e ser-se cidadão há um sem número de possibilidades e um constante movimento – em ambos os sentidos.
Num extremo o súbdito, sem direitos – por vezes nem à própria vida! –e que deve submissão e vassalagem aos seus senhores, que de tudo podem dispor. O termo “súbdito” é geralmente usado em contraposição a monarca ou soberano, mas são comuns – mesmo nos nossos dias – as situações onde, embora não se usem tais termos, se detectam facilmente sinais daquele tipo de relação de poder. E no outro extremo, os cidadãos, conscientes dos seus direitos de escolha e de opinião, e do seu dever de escrutinar permanentemente aqueles por si eleitos para governar.
São milenares as lutas dos súbditos, servos ou escravos, para conquistarem direitos, o espaço de cidadania e o respeito, que todo o ser humano deveria merecer. Lutas complexas, com constantes avanços e recuos, como descobrimos repetidamente nos processos políticos contemporâneos. Lutas que podem libertar por completo, ficar a meio do caminho ou até resultar na regressão e limitação de direitos conquistados, puxando cidadãos outrora livres para condições que os aproximam, de novo, da servidão. Mesmo em países bem mais “avançados” que o nosso, não é raro assistirmos a tais regressões.
O processo autárquico ganharia em ser visto como um dos campos onde este tipo de luta se poderia travar. Pois oferece uma enorme oportunidade para acelerar a emancipação dos indivíduos no sentido de serem mais cidadãos e menos súbditos. Sabemos, no entanto, que pode ser um terrível logro pensar-se que a mera colocação de uma cruz numa folha de papel, dando a alguém o mandato para gerir, por um certo período, os interesses públicos de uma determinada região garanta, só por si, o controlo cidadão desse poder local.
O risco reside –pelos hábitos cultivados historicamente – na facilidade com que permitimos que uns poucos possam manipular os eleitos e os cidadãos, perpetuando a sua posição de poder, por serem de famílias ou linhagens privilegiadas, por serem mais ricos, ou por terem a ambição deconquistar a pulso a posição de “senhores”, empurrando os outros para a posição de “seguidores”, cachicos ou bajús, recorrendo a designações que localmente usamos.
E até porque pelo exemplo da transformação conseguida no passado em que muitos vivíamos como indígenas, escravos, assimilados ou outros servos (hoje “independentizados”, ainda que não necessariamente libertados)temos a obrigação de continuar a luta e de clamar: tenhamos esperança! Continuar uma luta que não garante por si só a vitória, onde pode sempre haver recuos, se formos passivos, não tivermos a coragem necessária, e não estivermos esclarecidos e atentos.
Luta que só em parte pode ser travada no campo legal. A evolução das leis no sentido de alargar os espaços que permitam nivelar e controlar o poder, é indispensável. Mas é um erro profundo ignorar que há muito mais a fazer do que criar as bases legais...
Promover e desenvolvera cultura cidadã, assente na igualdade de direitos, na participação, na partilha de poder, na limitação e regulação do poder individual, e na vigilância para evitar a concentração de poder(es) nas mãos de uns poucos… seja na base da acumulação de riqueza, na ascensão a posições políticas ou militares, ou outras formas de influência decisiva no controlo da sociedade, é fundamental.
As escolas onde somos formatados, os locais onde trabalhamos, as associações ou igrejas que frequentamos, os partidos ou grupos onde militamos – todas elas, hoje, peças de uma engrenagem que propicia a criação de súbditos – deviam ser essencialmente espaços de aprendizagem, pela prática, do jogo que regerá a forma de fazermos política ao nível local e nacional. Se dessa prática resultaralteração da forma como se tomam decisões que afectam o colectivo, poderemos melhor regular e limitar o exercício do poder por quem para tal for mandatado.
A Assembleia Nacional acabou por aprovar as alterações propostas de revisão constitucional. No que toca às autarquias –além de termos aceite mais uma vez a restriçãodo debate aos “especialistas” – ainda não se dá a suficiente importância a estas questões de cidadania.
Poderão as autarquias vir a ser um espaço que nos ajude à transformação da “cultura” que prevalece na nossa sociedade? Poderão elas, pelo menos, limitar a prática tão tolerada e reinante das elites de Luanda de terem a prorrogativa – como se suseranos fossem – de distribuir ducados e condados nas suas coutadas?
De uma coisa estamos seguros: não devemos esperar pelas autarquias para o reforço da cidadania e o combate aos traços de servilismo. Podemos começar já amanhã a envolver-nos, juntamente com quem tenhamos afinidade, na transformação do que nos rodeia: no local de trabalho,no bairro,no quarteirão ou na vizinhança próxima. E porque não em casa?
(exergue tirado de “Súbditos, Cidadãos e Marajás”, em “The Hindu”, 2018)
* Académico angolano independente